26.9.07

Fotos de Arremate


Edifícios Finos VI - sp


A Cicatriz e a Escrita


O poema
Existe
Desde sempre.
À espera do
Tempo.
Precede a
Escrita.
Cicatriz invisível
Antes da faca
Que a
Inscreve.


Telha
Fora do lugar
Chuva de
Verão no inverno
Chuveiro quebrado
Goteira
De
Uma
Gota

Mar não rejeita
Rio

Lágrimas


Água salgada
Gritos de dor
Tristeza de mundo

Beijos


Como
Fogo
Poemas
Carne-viva

Vira-lata


Vira-lata desta cidade que sou,
Que me é,
Não vi
Botarem os parques e as igrejas
Atrás das grades.
Amante da beleza ou
Alma aflita,
Agora tenho horário de visita.
Sou ambos de repente.
Não mais flores roubadas
De um jardim, para uma amada.
Não mais madrugadas
Em bancos de parques
Olhando as estrelas por entre
O bordado das copas das árvores.
Agora apenas o olho comprido
Desde as calçadas,
Tristonho e solidário,
Altivas como altares,
Às solitárias,
Seguras e tristes
Rosas trancadas.

Passagem


Passar por minha vida...
Egoturismo.
Passagem
Só de ida.

Aniversário Adversário


Lá se vão 50 anos e
Esse diacho de
Sabedoria que
Custa-me a chegar.

Menino


Sobre minha alma
De menino
Finas camadas
De cinismo,
De traquejo,
De experiência.
As manhas, as cascas
De adulto.
Agora é descolar,
Uma a uma,
As tênues capas
Que juntas se espessam:
Joio e trigo,
Joio e trigo,
Joio e trigo,
Para, quem sabe,
Vislumbrar, ainda que
Pálido,
O rosto esquecido,
O olhar colorido,
O gosto da primeira vez
Em tudo.
Cuido dos meus
Dias grisalhos,
Removendo meticuloso
A cola poderosa do
Tempo e do hábito.

Maravilha


Para Galeno

Toda a maravilha
Da vida,
Alça vôo.
Banal como um pardal.

Pessoa


Fernando Pessoa.
Li o que escreveu.
Sentei em sua mesa em Lisboa.
Ouvi, às vezes entediado, a seus inúmeros admiradores.
Nunca li nada sobre alguém que contigo ficasse no
Curso de sua dor. Nada. Depoimento nenhum, testemunha nenhuma. Valeu-te? Tiveste companhia? Uma copa, um copo, um ouvido que fosse?
Passou em branco, ó pá. Solidão, ora pois. Bem-vinda a não companhia?
Que importam posteridades.

Poemas / O tempo das coisas


Se o corpo não pára,
O olho não vê
E o coração não enxerga.
Se não há o tempo das coisas,
A alma não se move –
E a mão não escreve!

Edifícios Finos V - sp


Dizem


Talvez seja melhor não ter filhos. O bom da vida é viajar. O segredo está na moderação.
Comer de tudo, mas não muito. Tomar sol, fazer ginástica e escovar os dentes depois das refeições.
Ser cordato, combinar as cores e nunca usar bege. Bege é só cor de parede.
Estudar inglês, acertar o relógio pelo funcionamento do intestino e, à noite, comer só coisas leves.
Amores da noite não florescem sob a luz do sol, amor de verão não sobe a serra e quem nunca chorou por amor não viveu.
Ler pelo menos um livro por mês, lavar os cabelos todos os dias, e não deixar passar muito tempo sem telefonar para os amigos.
Viajar em feriado prolongado é fria, o negócio é viver no contra-fluxo. Não se fala de dinheiro à mesa e é pecado mortal criticar o último namorado dela.
Fila dupla é falta de cidadania, não se buzina perto de hospital e o carro deve andar razoavelmente limpo.
Ver muita televisão faz mal, cigarro só depois do meio-dia, faltar à análise é auto-sabotagem. Ler horóscopo, tudo bem. Mesmo que não acredite. Melhor até se não acreditar.
Nunca ir ao supermercado com fome. Quanto mais colorido o prato, mais saudável. O Mercado Municipal é incrível. Principalmente os vitrais.
Sapatos e cinto devem combinar. Meia da mesma cor dos sapatos também é bom. Um acessório discreto dá personalidade. Deus está nos detalhes.
É mais gostoso sair durante a semana. Sábado à noite está tudo lotado. Fim-de-semana é para ficar em casa, visitar amigos ou então viajar por perto.
São Paulo tem lugares que ninguém conhece. Uma réplica do Templo Dourado de Kioto, por exemplo, com pequenos lagos artificiais habitados por carpas coloridas.
Ir comer pizza no Brás, segunda à noite, é um grande programa. Mas se for com alguém que você gosta e que nunca fez isso, é claro.
Fazer um dia inteiro de jejum de vez em quando para limpar o organismo.
Feng-shui funciona e é agradável aos olhos.
A gente nunca sabe, mas é bom prestar atenção sempre.
É o que dizem.

Topo de Montanha


Pois é, essa começou como muitas viagens, grandes ou pequenas: na estação rodoviária. A estação de São Paulo está toda de roupa nova, com serviços de conveniência, abrigando todas as lojas de franquias conhecidas, mais algumas que só por lá são vistas. Organização, limpeza, segurança e conforto. Parece até aeroporto. Senti falta de carrinho de levar bagagem. Talvez isso seja coisa exclusiva de aeroporto.
Mas, para mim, essa pequena viagem começou quando praticamente chegava a meu destino, quando atravessava o braço de mar que separa o continente da ilha.
Começou com o cheiro, o vento e o barulho do mar, com a vizinhança dos grandes navios cargueiros, e à distância, o destino. Aquela imensa massa de terra saindo do mar verde, o verde mais claro das árvores ao fundo, em vales, reentrâncias, picos. Aos poucos, mais e mais nítida, a cidadezinha serpenteando pela costa com algumas pequenas incursões morro acima.
Afinal cheguei.
A me esperar o rosto amigo de amizade antiga, uma casa arejada, cães e gatos alegres, o sorriso me sorrindo através de muitos anos e um grande abraço apertado. Além disso, um quarto, um banheiro, além da companhia de um gatinho recém-chegado ao mundo há menos de trinta dias. Não se pode querer muito mais da vida.
Mas muito mais estava por vir. Há algo de mágico na conversa entre duas pessoas que conversaram muito na vida. Muitas premissas já estabelecidas, muitos momentos convividos, muito pão compartilhado. Há um tempo inicial que é gasto preenchendo os espaços de história que ficaram faltando, decorando com detalhes outros episódios contados mais rapidamente ao telefone ou por carta. Mas, depois, vai-se à essência e trocam-se as impressões da viagem maior da vida, fala-se dos aprendidos e dos desaprendidos, das esperanças e dos desvios de rota, do vai da vida que foi no vai da valsa.
Foi banho de alma em chuva de ilha. Que tudo lava. Lembranças de coisas de que nunca se soube. Natural, parte da topologia e das geografias, dos ângulos e das marés, pontos de vista vistos somente em certos pontos da vida.
Apesar da curta estadia, ouvi o começo de muitas outras histórias. Da japonesa que cultiva bromélias e conhece os índios caiapós ao arquiteto e suas casas de bio-arquitetura. Comi a comida de Donana, com a saborosa pimenta local, ouvi mais de uma pessoa mencionar as jaqueiras que são nativas do lugar. Contaram-me até sobre sítios arqueológicos com segredos passados, e muitas outras coisas a desvendar.
E eu, que sempre disse preferir montanha à praia, que nasci e vivi larga parte da vida na única grande metrópole brasileira, senti uma vontade danada de fazer como tantos gringos que vêm para o Brasil: morar em uma ilha dos trópicos. Afinal, uma ilha é o topo de uma montanha que começa no fundo do mar. Posso morar no topo e, ao mesmo tempo, estar na beira da praia.
Para coroar o passeio, fiz o que não fazia há muito tempo: vi um pôr-do-sol cinematográfico dando boa-noite à mágica ilha. Que o sono lhe seja leve. Essa ilha, a minha amiga antiga, seus amigos e suas histórias tiveram o condão de deixar minha alma em paz. Na despedida, na travessia de volta ao continente, ao observar aqueles enormes petroleiros atracados, aquelas jamantas do mar, vi que pode haver delicadeza até no que é bruto: um deles chamava-se Ataulfo Alves.

Infâncias


Tenho dó dos moleques de hoje em dia presos no playground dos prédios.
Quando saía de bicicleta, depois da aula, não precisava avisar ninguém. Enquanto fazia sol não dava notícia de mim. Só me esperavam para o jantar, lá pelas sete da noite. Jogávamos bombinha em caixas de cartas ou então as colocávamos debaixo de latas para brincar de foguete. Carrinho de rolimã ladeira abaixo, sem breque, sem nada. Tocar a campainha e sair correndo. Cortes, braço, perna e até dente quebrado, ninguém ligava muito. Cuidava-se e pronto. Partia-se em seguida para outra.
Brigar no recreio então, era coisa comum, todo mundo fazia roda no banheiro ou no campo de futebol. Não podia chorar. Pai nenhum ousava tomar alguma providência que não fosse deixar a gente se virar.
Água era tomada na mangueira. Nenhum feirante ligava muito se roubássemos uma mexerica e fugíssemos em disparada.
Telefonar só se fosse para passar trote. Passava-se na casa do melhor amigo, assobiava-se, com dois dedos de cada mão. Era a senha. Repetir o ano não era desejável, mas acontecia. Ninguém nunca morreu por causa disso. Lição de casa se fazia à noite, antes de dormir, quando fazia. Todo mundo ia para escola sozinho, a pé.
O negócio era aprontar e não ser pego. Se pegassem, e às vezes pegavam, pagava-se o mico e pronto, coisa de moleque impossível.
Brincava-se de aventura, de seguir o mestre, de andar no telhado, de entrar em casa abandonada. Tinha guerra de mamona e, de vez em quando, alguém quebrava o pau com os pais e fugia de casa. Depois voltava ou então era voltado.
Todos os zeladores nos detestavam. Jogava-se bola na rua ou gol a gol no quintal. Quase todo mundo tinha cachorro.
Não pegava bem ser bom aluno. Lembro-me de minha primeira calça comprida.
Tenho mesmo dó dos moleques de hoje em dia, presos em playground de prédio. É celular, é computador, é videogame. Qualquer pirralho já anda todo produzido, e só é solto no shopping. Um jaulão grande e cheio de seguranças por toda parte. Água só de garrafinha e tome-lhe televisão. Ninguém mais sobe em árvore ou rouba jaboticaba. Parece que os moleques já começam adolescentes, desde criancinha. Nem sabem o que perdem.

Rua Augusta & Cercanias


Sábado. Saí para uma caminhada, mas, uma vez na Padaria Real, resolvi dar um pulo até a Livraria Cultura para comprar um dicionário etimológico da língua portuguesa – um velho sonho a preço acessível.
Fui a pé. O dia estava agradável. Não achei o dicionário, “esgotado”, disseram-me.
Uns dias mais tarde, encontrei um exemplar na Livraria da Vila. Resolvi almoçar por ali mesmo – um Beirute no restaurante Frevo, um dos poucos lugares e sanduíches que estão iguaizinhos há trinta anos atrás – e pegar um cineminha na sessão das duas, que nunca lota.
Depois do filme, resolvi descer a rua Augusta. Minha história com essa rua vem de longe, desde antes de eu nascer. Meus avós paternos moravam lá, entre a Alameda Tiête e a Alameda Lorena. Meu pai, meus tios e tias passaram uma parte da infância e da adolescência naquela casa. Trago comigo uma foto dela. Nessa época o transporte era o bonde, cujo ponto final ficava na altura da rua Estados Unidos ou da avenida Brasil, não sei bem. Sei que a rua era de paralelepípedos, mas todas o eram até a década de cinqüenta.
Naquele sábado à tarde desci a rua Augusta, ao contrário da canção do Hervé Cordovil. A subida dele era medida em quilômetro/hora, a minha descida em década/quarteirão.
Na minha infância e grande parte da adolescência, a rua Augusta era o centro chique de compras desta província, que São Paulo, a despeito de todos os ares de metrópole – a única típica do hemisfério norte a ficar no hemisfério sul, dizem alguns – ainda é, em seu coração e sua alma. Havia então butiques elegantes, casas de chá e muitos cinemas. Que me lembre, pela ordem, na direção bairro-centro, cine Paulista, cine Astor, cine Rio, cine Picolino, cine Majestic, cine Regência e cine Marachá. Além da Kopenhagen, com suas barras de marzipã e pastilhas dragê, a Casa Capricho e, mais tarde, as Lojas Modernas que vendiam brinquedos, a Hi-Fi, a Poster Shop, a Livraria Mestre-Jou e a primeira Livraria Cultura, que começou como uma pequena biblioteca circulante de livros alemães, justamente em frente à casa de meus avós. Não posso esquecer do Flamingo e seu sorvete Mud-Mud. Esta rua foi, durante muito tempo, o ponto de encontro dos jovens, fazendo às vezes de pracinha de cidade do interior, onde os garotos e as suas “pequenas” iam desfilar a última moda, o último modelo de carro, trocar olhares, iniciar e terminar namoros.
Depois veio a decadência. Com o advento dos shopping-centers, a rua foi murchando, esvaziando.
Hoje, durante essa descida, vi um comércio mais pobre, em comparação com seus dias de glória. Muitos salões de beleza, bingos, galerias com lojinhas, em pálida imitação de praças de shoppings, e uma ou outra loja remanescente dos tempos áureos. Curiosamente, suas travessas, que antes eram apenas isso, travessas com residências e um ou outro comércio local, sofisticaram-se e se tornaram completamente comerciais, sendo hoje muito mais metidas a chique do que as suas congêneres de outros tempos jamais sonharam.
Desci a última parte do caminho, da Lorena para baixo, pelas paralelas. Em uma delas, notei dois lugares: uma clínica de cães e gatos, na Consolação – onde morreu meu cachorro Paddy, há tantos anos –, que continua idêntica; em frente, há uma farmácia que, vi hoje, mudou de nome pela terceira vez; situa-se na parte de baixo de uma casa modesta de construção típica da década de quarenta. Chamava-se primeiramente Farmácia do Povo; depois Farmácia da Elite, quando o bairro ficou com ares de fino; e agora carrega o prosaico nome de Farmácia Consolação. De fato, a graça da farmácia foi um consolo.
A rua Augusta, homônima de uma outra famosa em Lisboa, ainda há de ter outro destino, vai gerar outras histórias, tenho certeza. Para mim ela continua uma rua de paralelepípedos, com bondes, ônibus elétricos e cinemas. De vez em quando ela me permite, além do acesso à rua Estados Unidos, passear pelo tempo.

Passeio na Zona


Uma poça de água escura em uma estrada de terra. Um pneu de caminhão passa penosamente por ela. Primeiro entra e depois sai, quase que em câmera lenta, espirrando água.
Por caminhos precários, vindos de todos os cantos, em jornadas que às vezes levam dias e dias, toda a sorte de mercadorias viaja pelas veias congestionadas e barrentas deste país.
Aveia e carne, soja e arroz, castanhas e nozes, açúcares, mascavos ou não, pingas, queijos, batatas, mandioca e trigo, maçãs, peras, azeitonas e uvas. Tudo viaja sacolejando e serpenteando em enormes veículos, vindos de tantas outras partes e dirigidos por gente que deixou para trás, por várias semanas em cada viagem, mulher, filho, cachorro, galinheiro, amizade, só para que toda essa abundância, feita de chão, de suor e de enxada, chegue até aqui.
Quem passa pela zona cerealista de São Paulo deve sentir isso de alguma forma. São umas tantas ruas, atrás da avenida do Estado, vizinhas ao Mercado Municipal. Mas que passeio proporcionam!
Grãos, aguardentes, laticínios, todas as mercadorias ao alcance da mão e do olfato. Não há o que não haja. Armazéns, esteiras rolantes, carrinhos de mão – desses de carregar sacas –, pessoas suadas e sem camisa movimentando-se incessantes, para lá e para cá, levando e trazendo, descarregando aqui para carregar logo ali, comprando e vendendo a matéria-prima que vai para a boca dos mais variados tipos de comensais. Do milionário dos Jardins, degustando, digamos, sofisticadas receitas marroquinas, até migrantes e emigrantes de todas as partes fechando os olhos de puro prazer e suspirando de saudades de casa, da infância, da fartura e do passado, saboreando os pratos da terra distante, viajando no tempo e no espaço.
Estão todos aí, da enxada enferrujada ao garfo de prata, ambos remotos e inacessíveis um para o outro, mas irmanados pelo denominador comum da espécie: comer. E nesse caso, comer muito bem, sim senhor.
Conheci nessa zona o Laerte, dono de uma loja de bebidas. Maravilhou-me com histórias de pingas de todos os cantos e alambiques. Sabe tudo a respeito do assunto. Há também o “Jardineira”, que há quarenta anos vende cebola e alho a granel para os revendedores pequenos das esquinas da cidade. Origens, processos, marcas, famas, más famas e até mesmo algumas infâmias. “Tem gente por aí que paga mortadela e vende caviar”, dizem, falando de aguardente ou de cebolas. É da natureza do comércio haver tanto espertos como incautos, sem esquecer dos marujos de primeira viagem, naturalmente.
Senti-me um fenício quando entrei pela primeira vez em um mercado: extasiado com madrepérolas e os âmbares, com as especiarias vindas de portos distantes, inebriado com os perfumes exóticos de outras terras, para além de outros mares.
Mas tudo isso pode acabar, todo esse mercado pode mudar para perto do Rodoanel. Senti um aperto no coração quando soube disso, mas depois pensei: “ora, Sérgio, a vida é mesmo assim. A mudança é bom senso urbano, facilita a troca e desafoga o trânsito”. Vamos perder, é claro, esse pedaço de chão impregnado de história suada, com paredes descascadas pelo tempo. Poderia lamentar o tal do Progresso que leva embora, de embolada, histórias, pessoas, lugares e arquiteturas.
Mas prefiro pensar que algum menino, entrando pela primeira vez no novo mercado fenício do Rodoanel – depois, é claro, que suas paredes adquirirem alguma espessura afetiva e de algumas histórias correrem junto aos caixotes, sacas e papéis usados pelas enxurradas da vida –, sinta entrar por seu nariz e por seus olhos todo o aroma da riqueza humana, antiga como a invenção das cidades, desse mercado feito de terra e de rodas, de suor, de caminhos e de gente, de trabalho de sol-a-sol e de lua-a-lua, para que a vida continue, para que todos comam, mesmo que de forma ainda desigual, neste nosso país, para que continuem a partilhar, todos os dias, do pão imemorial.

Rio


Desci. Vendo de cima notei a grande quantidade de piscinas em uma cidade a beira-mar. Quanto mais perto da orla, mais piscinas. Desci no Santos Dumont, um aeroporto tropical: despojado, arejado e com linhas simples.
Muito verde, muito azul, muito céu, muito ar e muito mar. Arquitetura e largueza de espaços. É bom voltar aí. Depois da avenida, as ruas. O bairro do Rio em que me hospedo é plano, as pessoas andam a pé e todos parecem à vontade. Está mais para Manhattan do que São Paulo jamais estará. Pois é, durma-se paulistanamente com um barulho desses. Mas é fato. Pode-se sair para andar a pé sem medo de ladeiras, de falta de sentido no planejamento das ruas, de buracos nas calçadas. É uma grade com poucas variações, mas com muitas cores. Vai-se pela praia e pode-se voltar por uma rua de dentro. Os bairros entre o Leme e o Leblon sucedem-se com fronteiras claras e inconfundíveis, cada qual com sua personalidade e seu ar próprio. Como Nova York, temos quitandas com frutas à mostra, lojas pequenas e chiques, supermercados no meio do quarteirão, bancas de jornal, prédios pequenos de quatro andares com árvores e jardins na frente. Nenhuma placa de “aluga-se” ou “vende-se”. Quem seria louco de alugar ou vender seu quinhão do paraíso, a poucos quarteirões das praias mais lindas do planeta, com gente simpática e relaxada para se conviver? O nome das lojas possui aquele humor que só os cariocas têm: “Patifaria”, “Linha D’Água”, “Pontapé”, “Pano Profano” e por aí vai. Uma delícia.
O pãozinho é maior que o de São Paulo, a média também. O quanto se fala da cultura do corpo no Rio, não é bem assim. Mais que Apolos e Afrodites, não que não existam, os cariocas estão de bem com o próprio corpo. Ninguém encolhe a barriga ou procura esconder seus defeitos. Todos se expõem com o prazer de poder desfrutar com pouca roupa o evidente paraíso sobre a terra em que habitam. Não estão preocupados com isso, esta a verdade. Deve ser isso que nos cariocas incomoda os paulistas, sempre escondidos atrás de grifes e bem-vestires, poses e ares.
Há nomes que só vejo no Rio, Saldanha, Gama, Belfort. Devem ser nacionais. Como capital do Império e da República talvez estes nomes se destaquem mais. Talvez isso explique o grande número de generais que são nome de rua, neste país onde sempre se deu demasiada importância à essa patente. São Paulo é mais provinciana. Seus nomes de rua talvez sejam uma expressão disso, dessa idéia exagerada de si mesmas que só as províncias se dão, inda mais a mais rica, com veleidades de querer mandar no resto.

Lugares / 25 de Janeiro


Nasci um ano antes do Quarto Centenário, quando inauguraram o Ibirapuera. Havia barcos a remo e a motor no lago e um restaurante ao lado do deck. Ia-se a pé por ruas de sibipirunas e tipuanas.
Os Jardins podiam ser chamados de Pomares: havia ruas com jabuticabeiras, amoreiras, pés-de-café (tinha um na frente de casa) e muitas outras.
As pajens – era assim que as chamavam – andavam com os carrinhos de bebê nas praças, os táxis e os telefones eram pretos, os guarda-civis usavam uniforme azul e luvas brancas. Dava para jogar bola na rua Estados Unidos. No centro da Praça das Guianas havia uma árvore imensa. Quando eu era menino dava para ficar contando os carros que passavam pela 9 de Julho. Era lá que passava a parada de 7 de Setembro, e, no carnaval, havia corso na avenida Brasil.
O Harmonia não era clube de gente metida. A rua Canadá inundava em dia de chuva. O Morumbi não existia. A cidade acabava lá pelo Jockey Club, depois era ‘o pasto’, como se dizia. Hoje ando como alma penada nessa minha cidade, arrancando pedaços de memória das poucas casas de então, de um quebradinho na calçada, de uma ou outra árvore. Meu Tio Julinho parava o carro naquela esquina quando vinha tomar lanche no domingo. A Casa América tinha o melhor sorvete de pistache do mundo. O primeiro supermercado da cidade chamava-se Sirva-se, localizado na rua Augusta. Um pouco mais para cima ficavam o cine Paulista e a primeira lanchonete que só vendia hot-dog com fritas e hot fudge nut. Ia para o cinema, para a escola, para o clube, para visitar minha avó, tudo de bonde. Depois veio o ônibus elétrico que fazia hmmmmmmm quando acelerava. A praça das Bandeiras chamava “O Piques”, e a rua Direita era torta. O cine Marrocos era o mais aconchegante, e a Salada Paulista, na avenida Ipiranga, era restaurante de gente educada. Comia-se bem. Havia a praça da República e flores no largo do Arouche – acho que ainda têm. As meninas do Externato Meira eram as mais galinhas, e o Consulado Americano ficava no Conjunto Nacional, aquele, com o relógio da Willys (Overland do Brasil). O crioulo que fazia as entregas da Mercearia Vera chamava-se Sagüi, e todo dia era possível cruzar com o escocês e seu coolie. O tempo vivia nublado, sempre garoava. A cidade era mais fria, as pessoas mais quentes. Dormia-se de janela aberta. Meu cachorro Paddy andava solto, todo mundo o conhecia. Todas as ruas eram de paralelepípedos.
Esses meus cabelos brancos são apenas um disfarce.
Nunca cresci: continuo menino e continuo contando os carros.
Hoje é aniversário de São Paulo.

Edifícios Finos IV - sp


O Barão


A tarde estava pedindo uma brisa e simplesmente não dava para ficar em casa. Sendo sábado, fui tomar uns ares, um suco e ver gente, que sou desses que se morasse em cidade pequena ia ter calo no cotovelo de tanto ficar na janela vendo o movimento.
Fui para a Benedito Calixto e cheguei antes da multidão. Consegui uma mesinha no restaurante Consulado Mineiro e um suco de laranja à minha frente. Tudo de acordo com as expectativas, coisa rara de acontecer em São Paulo.
Numas mesas mais para lá, uma turma alegre estava cantando sambas. A pessoa que as animava prendeu minha atenção. Primeiro pela escolha de repertório, vejam vocês, ele estava cantando e tocando nada mais nada menos que Jackson do Pandeiro.
Amor de Mentirinha, Bodocongó e Cabeça Feita. Logo depois, Coco do Norte, Chico Chora e Sina de Cigarra. Uma qualidade de voz e de performance não só de profissional, mas de quem sabe os sambas por amor, decorando cada letra como se as histórias tivessem sido com ele.
A improvável figura vestia terno de linho 120, suspensórios, gravata borboleta e polainas, com lencinho branco no bolsinho do paletó e tudo. Um tipo. A seu lado, engraxada e conservada, a caixa preta de couro do pandeiro.
Entre a segunda e a terceira canção, armei-me de coragem e perguntei se ele conhecia Vanzolini. Pergunta capciosa, pois sabia de antemão a resposta. Zoólogo, poeta e sambista maior desses pagos, Vanzolini é conhecido até por quem não sabe seu nome. Muitos versos de seus sambas já são parte da língua portuguesa, como “dar a volta por cima” e “os pecados de domingo, quem paga é segunda-feira”.
O Barão conhecia tudo, naturalmente. Daí para frente, até a tarde virar noitinha e a noite madrugada, cantamos os sambas que eu sabia e outros tantos que fui aprendendo pelo caminho. O que eu não podia imaginar eram as histórias da deliciosa e ímpar figura.
O homem é uma enciclopédia ambulante da música popular brasileira, e não só. Sabe tangos como poucos, entende os meandros e as malandragens do “Lunfardo” e canta-os com sentimiento verdadeiramente portenho.
Seu nome é Ricardo Martins, mais conhecido como Barão do Pandeiro.
Supus, é claro, que o título lhe fora dado pela maestria no instrumento. Para minha surpresa, não era isso.
Nasceu em Niterói, mas é de linhagem árabe. O nome original de sua família é Al Barum, a verdadeira explicação. Mas poderia ser pelo talento. Seu pandeiro, como me contou, foi feito com todo o cuidado, com couro de porco – o melhor – e lustrado na “boneca”: um saquinho de pano, contendo as substâncias polidoras, evita o contato direto dos ingredientes com o instrumento, como me informou.
Carrega consigo, no bolso do paletó, aquela espécie de terço que os árabes usam para acalmar-se e refletir, coisa que não adianta muito no caso do Barão, cuja voltagem parece ser de duzentos e vinte: quando não canta e toca, conta histórias saborosíssimas da música brasileira, pontuadas com exemplos musicais, expressões, como “Fulano é magro como um fio de azeite”, “o tempero da salada não pode ser o prato principal” ou “não jogo purpurina em merda”.
Já o encontrei umas outras tantas vezes. Já fui ouvi-lo cantar em muitos barzinhos que têm a felicidade de dispor de sua arte para entreter os clientes.
Antes de nos despedirmos, naquela primeira vez, ele propôs um brinde: “Aos nossos defeitos, já que as qualidades ninguém vê mesmo”. Fiz tintim, pois em geral, isso tende a ser verdade. Mas cá estou a desmentir o artista e a propor, ao invés, que brindemos à suas qualidades que são muitas e variadas.
Saúde e vida longa, grande Barão, que do resto você mesmo cuida.

Entretempo


Nunca fui um grande torcedor de futebol. Escolhi um time, ainda criança, pois não era possível freqüentar a escola ou a turma de amigos sem torcer por algum. Mas não jogava ou acompanhava jogos. Lembro-me do Santos, tido como o melhor entre todos os times da época.
A Copa de 70 foi a primeira ocasião em que realmente prestei atenção em jogos de futebol. Primeira Copa televisionada para o Brasil, novidade de luxo da época.
A performance da seleção brasileira foi espetacular. Vitória após vitória, jogo a jogo, o time galgava posições em direção a tão esperada final. Mas foi no quarto gol da final, contra a Itália, que vi uma jogada que me prendeu a atenção como nada até então em uma partida de futebol.
Pelé recebeu e vinha com a bola dominada na direção do gol adversário quando, vagarosamente, parou um pouco antes da meia-lua da área adversária, deixou o ar sair dos pulmões e, depois de imóvel por alguns instantes, rolou a bola mansamente com a lateral do pé para Carlos Alberto que vinha em diagonal pela direita. Ele fuzilou o gol italiano. Sem defesa. 4x1. Com esse último gol ganhamos a Copa. Fomos tricampeões do mundo.
Nunca mais esqueci o timing daquele gol arquitetado por Pelé.
Agora em março de 2005, assistia a uma partida entre o Barcelona e o Chelsea, quando vi uma jogada do Ronaldinho Gaúcho que me lembrou o gol de Carlos Alberto e Pelé na final contra a Itália, em 1970. Ele estava perto da grande área e, na sua frente, quatro jogadores do Chelsea barravam-lhe a passagem. Ele gingou e chutou certeiro. Gol. Ficaram todos parados. Inclusive o goleiro. Tempo suspenso.
Duas maravilhas da habilidade humana.
Não cultivei, durante a maior parte da vida, como disse, o hábito de informar-me sobre futebol. Mas essas duas jogadas, tão distantes no tempo, serviram para me aproximar do assunto. Já mais recentemente, passei a desfrutar da amizade de alguns boleiros de escol. Ouvindo, fascinado, suas histórias, dou-me conta do quanto perdi por não ser um amante desta arte.
Contaram-me que foi esse o caso do gol de Alcides Ghiggia, na final da Copa de 50, aos 34 minutos do segundo tempo. A bola, chutada rasteira, quicou em um montículo na grama e passou no exíguo espaço entre o goleiro e a trave. Tempo suspenso novamente. Esse, com conseqüências trágicas para a auto-estima brasileira.
Não posso, apesar da tentação, dizer que o tempo parou nessas jogadas. Duas tive o privilégio de assistir pessoalmente, a outra, histórica, é anterior a meu nascimento. O tempo não pára. Todos sabem disso. Mas há uma mudança no timing desses jogadores, nessas ocasiões, que passam essa impressão de tempo suspenso.
São como pinturas no ar ou poemas em movimento. Obras de arte de existência brevíssima: vôo de pássaro, passo de dança, brilho de olhos. Em sua plenitude, são privilégios exclusivos dos que os vêem acontecer, usufruem a suspensão do tempo junto com esses artistas e participam desse mistério. O encontro do engenho individual com a oportunidade coletiva gerando beleza em estado puro.

Excelências


A primeira vez, que me lembre, em que olhei realmente atento a uma pessoa trabalhando de um jeito admirável foi em uma lanchonete na década de setenta. O sujeito tinha disposto tudo o que usava, os ingredientes do que preparava, os utensílios de cozinha – pratos, talheres, instrumentos, panos, guardanapos –, de tal forma que conseguia dar conta do movimento do lugar, sem deixar ninguém esperando em demasia, produzindo um lanche de primeira qualidade. Vê-lo trabalhar era assistir a uma dança harmoniosa em que até os inesperados incorporavam-se aos movimentos daquele balé sem música.
De lá para cá, fui botando reparo, como se diz em Minas. Encontrei ao longo da vida profissionais muito bons no que fazem.
O próximo de que me lembro é o Branko, um iugoslavo (país que nem existe mais, e hoje não saberia dizer se ele era sérvio, croata ou montenegrino) que possui uma pequena oficina mecânica lá pros lados do centro de São Paulo. Além da capacidade de diagnosticar, freqüentemente, os defeitos de um carro apenas de ouvido, sempre foi extremamente eficiente e escrupulosamente honesto com seus clientes.
Não era incomum que me mandasse tomar um cafezinho na esquina e voltasse logo, pois “o que o carro tem não é nada, e minha oficina não é estacionamento para você deixar o carro aqui o dia inteiro”. Quando voltava em quinze ou vinte minutos, não era difícil ouví-lo dizer que o problema estava resolvido e que não era nada. Custo zero.
A partir daí, passei a procurar profissionais como ele. Que maravilha a vida se tivesse um encanador, um dentista, um eletricista ou um médico como o Branko, com o dom profissional de serem os melhores no que fazem.
Estou sempre de olho para descobrir esses bailarinos. Posso dizer que, se não os achei em todas as especialidades, encontrei-os em muitas: a Dona Mafalda, que cuidou de mim e dos meus; a Christina Fornazari, minha dentista; seu Clementino, das máquinas de lavar; o Ronaldo Bérgamo, por muitos anos meu médico de todas as horas e de todas as aflições; o Ivaldo Bertazzo, bailarino de fato e o melhor exemplo da sua geração; o Laerte, cartunista genial, o Dave van Ronk, poeta e músico da geração Beat que abriu as portas do Rock & Roll para a década de sessenta; a Vera Capovilla, mestra da cirurgia e do aprender constante; meu irmão, o melhor professor que conheço; o John Howard, introdutor do grafitti no Brasil, e muitos outros. Todos, sendo exímios no que fazem, deram muito mais qualidade à minha vida, excelências verdadeiras em suas profissões.
Tudo isso me veio quando estava degustando um prato que chamei de “Contra do Paulo César”, o “Baianão”. O Paulo César é chapeiro, um desses mestres de que falo. O tal do contra que ele prepara é dessas coisas de comer gemendo, de tão bom. Trabalha no Bar Box, do seu Mário – já conhecido de muitos por seus petiscos e pela comida excelente, a preço justo - ali na Arthur de Azevedo com a Joaquim Antunes. Pit-stop em um box desses é para gente que sabe das coisas.
Alguns desses artistas a vida levou para longe de mim, forçando-me a sair a campo para achar improváveis substitutos, mas muitos outros estão ao meu redor até hoje.
Lembro-me de que uma das coisas que meu inesquecível professor de natação e de vida, Kanichi Sato, me dizia, era que “brasileiro tem a mania de querer passar com nota cinco”. Não sei se essa é uma verdade só dos brasileiros, se é característica do bicho homem, ou se era exagero didático do mestre. Sei dizer que foi e é privilégio meu desfrutar, conviver, usufruir, partilhar e assistir a vida com essas Excelências que decidiram, para a felicidade dos que os cercam, passar no exame da vida tirando nota dez. Com direito a diploma de honra ao mérito e fitinha azul no canto.

A interpretação dos sonhos


Estava sentado em um boteco outro dia – tomando um iogurte com adoçante, agora que mantenho distância entre o álcool e meu organismo –, quando vi um sujeito se aproximar do Éder, o apontador de jogo do bicho local.
O Éder usa uma mesa, situada logo do lado de fora do botequim, de onde conduz seu próspero negócio. Ali só se senta para jogar. Ou no bicho, ou conversa fora, mas, neste caso, só a convite.
De todo modo o sujeito começou a contar, sem preâmbulo nenhum, um sonho que tivera.
O bicho existe no Brasil desde que o Barão Vianna Drummond, adaptando uma idéia sobre flores do mexicano Manuel Zevala, resolveu dar bom uso aos 25 animais que tinha no Zoológico de sua propriedade, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1892. A idéia deu muito certo e não só para o Barão. O bicho enricou muita gente, mas empobreceu, inda que a conta-gotas, muitas outras também.
Uma das fontes mais importantes, se não a mais, dos palpites para o bicho está nos sonhos. Já interpretá-los não é para qualquer um. Há que se ter ciência. Por exemplo, sonhar com um número não deve levar, hidraulicamente, a jogar no próprio. Matemáticas, aritméticas e álgebras, como me informou um sabedor, devem levar a que se jogue no porco, na águia, no veado ou no jacaré. Pessoas nuas, traição, dá mesmo cobra, como talvez fosse esperado. Mas isso não quer dizer muito. Por exemplo, jogar no placar de um jogo sonhado é fria, jogo de azar, em sonho, é tigre, e não tem conversa.
Mas vamos ao sonho daquele sujeito: sonhara com um monte de passarinhos, dentro de um ônibus cor de laranja cujo destino era o bairro do Socorro.
As perguntas do apontador permeavam a narração, como que para esclarecer pontos obscuros, mas potencialmente relevantes para o diagnóstico correto do palpite: “Você estava dentro do ônibus... Não? Hmmm. Então não era viagem. Esse ônibus era grande? E a cor laranja? Era brilhante? Tinha outras cores no sonho?”
Tinha, tinha muitas cores. O palpite veio preciso. Jogue no pavão. Por que? Porque o sonho é colorido, e o pavão, com aquela festa de cores, é o bicho certo para esse sonho. O freguês assentiu e jogou no palpite. Setenta e quatro.
Não sei que bicho deu, mas fiquei pensando... Não poderia ir tão longe a ponto de dizer que aquilo tenha a mais remota semelhança com a psicanálise, mas não deixa de ser uma interpretação de sonhos. Vai saber se não alivia uma criatura de Deus sem o mínimo acesso à psicanálise, poder contar seus sonhos para alguém, ainda mais com a possibilidade de uns caraminguás de lucro como resultado. Terapia tropical.
Aparentemente o vaguear dos pensamentos, em plena vigília, não corresponde especificamente a bicho nenhum. Assim sendo, pensei em jogar no camelo, que é um ruminante, pela semelhança com o ruminar dos pensamentos. Depois hesitei e considerei o macaco, afinal nosso antepassado é o bicho que mais provavelmente tenha sido responsável por nosso pensar à-toa. Mas finalmente decidi pelo elefante, por ser mais bicho do que o macaco. Ninguém descende de elefantes e é o animal que acho mais interessante. Como num poema de Brecht, ele é grande, mas de cor discreta.Tem um corpo enorme, mas se alimenta de pequenas coisas. Possui uma memória prodigiosa e, elegantemente, se retira para morrer. Além de patrono das artes por fornecer o marfim. Afinal joguei no quatro mil setecentos e quatorze.
Ainda não tive oportunidade de conferir o resultado, mas a gente nunca sabe, vai que acertei no milhar.

Faces


Uma das atividades mais interessantes enquanto se anda a pé, além de pensar, sonhar e lembrar, é observar as pessoas e seus modos.
Às vezes estou entretido com algum pensavento e alguém me chama a atenção ao passar. Sem querer, começo a olhar a atitude das pessoas ao andar. Há os obviamente preocupados; os apressados; os preocupados apressados, as duas coisas freqüentemente acontecem ao mesmo tempo. Há os despreocupados, que não estão nem aí; os que parecem passear, vai ver estão mesmo; há os que olham para os outros somente quando esses outros não estão olhando; os que andam olhando para o chão e que, imagino, devem achar um sem-número de coisas nas calçadas e ruas da cidade. Existem os que andam com ar sonhador; os que estão sempre flertando; além dos que chamo de “turistas”, sempre olhando para cima. Aliás, olhar para cima reflete uma escolha interessante: parece-me saudável espiar o céu, suas nuvens e ventos, checar a cor do dia. Quando se olha para cima, olha-se para o infinito, para os bilhões de anos/luz entre nós e os limites do universo e do tempo.
Há também os namorados de mãos dadas, andando com o passo acertado; os velhos que não desistem, apesar de quaisquer dificuldades que enfrentam com as calçadas esburacadas da cidade. Deve ser uma espécie de enduro para a terceira-idade.
Muitos têm cara de paisagem.
Há também, é claro, cada vez mais os que andam e falam ao celular ao mesmo tempo, comportando-se como se estivessem sozinhas, no recesso de suas casas ou escritórios. Exaltam-se, fazem expressões irônicas enquanto ouvem ou então demonstram sinais de impaciência com as mãos, como se estivessem dando cartas ou apressando o interlocutor que não os está vendo.
A expressão do rosto das pessoas pode, se prestarmos atenção e treinarmos o olhar, nos dizer muitas coisas, embora não seja possível adivinhar precisamente o que vai por dentro dos outros pela expressão da face. Uns parecem muito infelizes, com o cenho carregado e cheio de vincos. Já outros parecem radiantes, dão a impressão de estar se divertindo com tudo o que vêem. Há também os que demonstram nervosismo, passando a impressão de estarem à beira das lágrimas.
Todos nós temos o rosto treinado, quero dizer, se quisermos, podemos, mal ou bem, fazer cara disso ou daquilo. Mas tenho a impressão de que temos uma cara de caminhar que não entrega o que sentimos e, ao mesmo tempo, não é uma expressão proposital, pensada, como a que fazemos quando conversamos com alguém. É apenas o suficiente para não sermos óbvios. Talvez a maior parte das pessoas parta do princípio de que, no fundo, ninguém está sendo olhado muito atentamente. Eu, pessoalmente, concordo. Acho que a maioria não está prestando atenção mesmo. Estão, como dizia minha avó, ensimesmados.
Quantos de nós, ficando apenas sérios ou pensativos, não ouvimos alguém perguntar se estamos tristes.
Por outro lado, sempre me fascinou o rosto das pessoas cegas de nascença. Não importa a idade que tenham, se homens ou mulheres, todos possuem uma expressão desarmada no rosto, um sorriso bailando permanentemente nos lábios, um ar de crianças, o rosto que a inocência teria.
Não consigo deixar de pensar que assim seriam os rostos dos seres humanos se vivêssemos todos em harmonia, na Utopia, no Jardim do Éden de um futuro impossível.
Mas esses rostos desarmados e destreinados para serem máscaras das emoções sempre me passam uma coisa boa. Fazem-me lembrar de que, se a utopia não é provável, a matéria-prima do ser humano permite que se tenha esperança.
Já eu não tenho a menor idéia de qual é minha expressão quando ando atento e penso em tudo isso. Pode até ser cara de paisagem... Vai saber.

Catando Lata


Não sei bem quem me disse, mas sei que me pareceu verdadeiro assim que ouvi: as grandes cozinhas são filhas da escassez.
A criatividade aparece quando se precisa inventar a partir de escassos elementos. A feijoada é um belo exemplo disso, feita dos restos da mesa dos senhores, hoje representa o país à mesa.
Muitas pessoas em São Paulo colocam os sacos de lixo para fora no dia anterior à coleta. Imagino que acham que o caminhão passa cedo. Por isso, pelo menos na minha rua, bem de manhãzinha, aparecem os catadores de lata. O primeiro a aparecer tem um método que lhe parece eficiente, quero acreditar. Usa um cabo de vassoura com um prego na ponta com o qual cutuca os sacos de lixo para verificar se há latas e, se confirmado, dá-se ao trabalho de abrir o saco preto à busca de seus tesouros. Não deve ser cem por cento eficiente, pois depois dele, passam outros, mais meticulosos, verificando saco por saco rua abaixo. Como são vários e se sucedem, imagino que todos auferem resultados. Temos a sorte, nós, os habitantes desse quarteirão, de sermos todos freqüentados por catadores ordeiros: abrem, verificam, fecham e deixam os sacos como os encontraram.
Soube que muitos pastores evangélicos também pedem a seus fiéis que tragam latas usadas para a igreja. Com tudo isso, o Brasil já é, parece, campeão mundial de reciclagem de latas.
Outro dia vi uma velhinha baixa que desenvolveu outra tecnologia. Na primeira vez estava parada, perto de mim, enquanto eu estava sentado à mesa de uma padaria. Achei que ela esperava por alguém. De fato, por mim. Aguardou que me servisse do restante de meu refrigerante para depois, delicadamente, me perguntar se podia ficar com a lata. Disse que sim, é claro.
Descobri que ela anda por bares e padarias do bairro e, de mesa em mesa, faz a mesma pergunta gentilmente. Depois da permissão concedida, a recolhe e guarda em uma sacola. Se não, agradece e segue seu caminho.
Inteligente a velhinha. Intercepta a lata muito antes que vá para o lixo aguardar a sua vez de ser colocada para fora na manhã seguinte. Além disso, poupa-se de abaixar e de abrir e fechar sacos de lixo a procura das tais latinhas. Isso sem contar que não precisa acordar cedo.
Já observei também que a cidade conta com um serviço de coleta de lixo informal. São caminhões que recolhem os sacos de lixo e levam-nos embora muito antes do recolhimento regular. Esses aproveitam não só as latinhas, mas jornais, revistas, caixas de papelão e um sem número de outros materiais recicláveis.
Quando eu era menino, “catar lata” era sinônimo de não fazer nada, de estar à toa na vida. Hoje é meio de vida para muitos. Uma verdadeira indústria.
A imagem da velhinha não me sai da cabeça. Vejo-a quase sempre, descendo a avenida principal com sua sacola de latinhas. Catando lata. Um belo exemplo da cozinha de escassez.

Pessoas / Retratos Escritos


Tenho um colete de pescador que comprei em uma viagem a Portugal. Possui exatos vinte e sete bolsos, vários lugares para iscas, pendurar anzóis e coisas que nem imagino.
Comprei por vinte e cinco dólares porque me pareceu ideal para quem está viajando. Como se sabe, viajar é andar a pé. E muito. Esse colete pareceu-me uma solução bestial, como se diria lá na terrinha. Nos seus bolsos pude colocar o jornal do dia, carteira, passaporte, mapas, folhetos, livros, cigarro, isqueiro, máquina fotográfica, óculos de leitura e escuros e até mesmo uma malha levinha, caso esfriasse durante o dia.
Perfeito. Sem mangas, naturalmente, e furadinho atrás para ventilar, permitiu-me carregar todo o meu kit de viagem, com o peso distribuído pelo corpo uniformemente e, ao mesmo tempo, ficar com as mãos e os braços livres para passear, fuçar em livrarias, sentar em um café de beira de calçada e, com sorte, não me parecer em demasiado com um turista.
Tudo isso para dizer que, uma vez findo o passeio, o colete permaneceu como uma das minhas melhores aquisições de viagem.
Às vezes, quando o clima está ameno, nem frio e nem calor – o que é uma raridade em São Paulo – acho de usá-lo por aqui mesmo. É bom para aqueles sábados ou domingos em que se sai para garimpar livrarias e sebos, comer qualquer coisinha fora, xeretar em uma das feiras ao ar livre, que são, aliás, uma das graças de São Paulo atualmente, e eventualmente, até terminar com um cafezinho entre amigos em algum lugar no fim da tarde. Programa para o dia inteiro, portanto, em que o tal do colete pode vir bem a calhar.
Pois bem. Outro dia, estava eu todo pimpão com o referido, acho que em um café depois de comer qualquer coisinha fora, quando me perguntaram: “Você é fotógrafo?”
Respondi que não. Mas nunca tinha me ocorrido que ele é em tudo semelhante a colete de fotógrafo. Bateu-me o sprit d’escalier, e achei que deveria ter dito que sim, que era, mas um tipo diferente de fotógrafo, já que minhas fotos são feitas com palavras. Mas fotografo o que vejo. Pareceu-me justo descrever esses curtos textos que produzo como retratos em branco e preto, isto é, imagens reveladas pelo texto, mostradas não em cromo, mas em papel e tinta. Pinturas, dirão alguns. Fotografias, digo eu, pois as crônicas, como as fotos, comportam pontos de vista peculiares, ângulos incomuns e permitem que se enfatizem detalhes que talvez passem despercebidos por outras pessoas. Mas não são, como as pinturas, uma interpretação do autor. Não é ficção. Estão mais para micro-autobiografias do que para qualquer outra coisa. E mais: senti que tinha o direito usar a peça de vestuário como se fosse mesmo um fotógrafo, mas, diferentemente deste, não preciso de flash, filme ou câmera para tirar um instantâneo da realidade do bolso do colete.
Afinal, sou cronista e tiro retratos por escrito.

Depois do Antes


Edifícios Finos III - sp


Idade


Não mudei,
Fiquei velho apenas.
Nem bem verdade,
Nem bem mentira.
Na média.
Como as poesias,
Aquelas,
Que vêm perfeitas,
Mas à falta de papel e tinta,
Viram nuvens redesenhadas.

Minha Cara


Te deixo.
Me deixas.
Deixamos juntos
Uma filha,
Órfã das circunstâncias.
É por tempo breve,
Talvez, bem sei.
Mas qualquer até logo
Carrega algo de
Definitivo,
De medo no coração,
De vazio nas horas.

Te deixo,
Me deixas,
Cercada de amigos,
De chocolates,
De filha amorosa,
De Chico,
Na vitrola, tocando para as
Visitas.

Te deixo e
Me deixas,
Minha cara-metade,
Minha meia-verdade,
Com lágrima dependurada,
De uma tristeza lá do fundo e
Nenhuma canção.

Emblemático


Fotogênico
Simpático
Carismático
Prolixo

Ciclotímico

Alcoólico
Canábico
Cocainômano
Nicotínico

Paranóico

Esquizofrênico
Neurótico
Psicótico
Parafrênico

Nostálgico

Those were the days...

Perdido no Espaço


Cena 1.
Ligo a TV. Na tela branca e preta do meu Philco espacial, o Randal Juliano apresenta “Os Astros do Disco”. Carão sorridente, Ciro Monteiro batuca uma caixinha de fósforos enquanto uma voz ao fundo diz: existem coisas que estão Além da Imaginação.

Cena 2.
Durval de Souza e Idalina de Oliveira fazem um comercial da Ducal, e eu corro para casa. Não tem mais aula hoje, o presidente Kennedy foi assassinado. Faço uma misturinha de açúcar e Nescau e sento na cadeira de madeira da Casa Alemã, pés apoiados na parede. Olho na tela confinada embaixo da escada.

Cena 3.
Família Trapo com minha família. Queria ver ao vivo no Teatro Record. Papai preferia sempre ficar em casa lendo. Sócrates diferentes. Sérgio Ricardo joga o violão na platéia e dessa viola explode a Copa do Mundo em todas as cores. Alegria, Alegria. A Feiticeira não se lembra mais de mim, mas eu me lembro dela. Alô, doçura.

Cena 4.
Retrato três por quatro. Aí cinco. Terroristas arrependidos. Mataram o Boilesen. Mataram o Marighella. O Geisel olha para mim e diz: “Ba’ noite”.

Cena 5.
Estou caseiro, estou casado. Agora assisto novela, aquela. A espiral anuncia: O Astro. Herculano Quintanilha, nosso primeiro Lair Ribeiro.

Cena 6.
As imagens se acumulam, se misturam e multiplicam. Pizza de domingo e tiroteio ao vivo no Fantástico. Conde Bóris às sete em ponto. Dei aula de inglês para a Lílian que trabalhava na Gazeta Mercantil e agora é o último rosto que vejo antes de adormecer e sonhar. Meus olhos olham para ela. A tela. Penso: Esta é a Sua Vida.

Corta.

Cocaína


Aos trinta e cinco anos,
Diante da assembléia reunida
Dos meus demônios, declarei:
Cocaína ou um revólver,
O que for mais lento.
Virei pó.

Eu nunca deveria ter saído da Espanha


Pessoas muito gordas em carros muito pequenos.
Pedestres que saem correndo na frente dos carros assim que abre o farol.
Gente que pergunta ao telefone se temos certeza de que fulano não mora em nossa casa.
E eu nunca deveria ter saído da Espanha.

Pessoas que falam gritando.
Pessoas que cospem quando falam.
Pessoas que pegam em você quando falam.
E eu nunca deveria ter saído da Espanha.

Gente que não toma banho.
Gente que não usa desodorante.
Gente que não escova os dentes.
E eu nunca deveria ter saído da Espanha.

Cocô de cachorro na calçada.
Fachadas pichadas.
Lixo no meio da rua.
E eu nunca deveria ter saído da Espanha.

É verdade, nunca, mas nunca mesmo, eu deveria ter saído da Espanha.

Poemas / No ano de meus cinqüenta anos


No ano dos meus cinqüenta anos,
A posse do Lula,
A guerra do Iraque,
A epidemia de Sars.

Dez anos que meu pai morreu,
Roubaram uma latinha inglesa da sala da minha casa.
Pela primeira vez em uma década não deixei a barba crescer em maio.

No ano dos meus cinqüenta anos,
Publiquei meu primeiro livro
Sem noite de autógrafos em lugar badalado,
E voltei a fazer análise quatro vezes por semana.

Fui temerário,
Não blindei carro e nem coloquei vidro escuro,
Dirigi de janela aberta e nem tirei o relógio.

No ano dos meus cinqüenta anos,
Perdi um amigo,
Não fiz amigo novo,
Não me senti sozinho.

Listei minhas profissões,
Office-boy, balconista e auxiliar de escritório,
Professor de inglês, poeta e compositor,
Secretário de milionário folgado,
Tradutor, cronista e escritor.
Cabe, afinal, mais de uma vida na vida.

No ano dos meus cinqüenta anos,
Teve isso e teve aquilo outro que eu já nem me lembro mais.
Afora isso foi um ano como outro qualquer.

Edifícios Finos II - sp


Um Passeio Real


Se uma pessoa for acreditar e seguir todos os conselhos que aparecem a toda hora na imprensa a respeito de vida saudável, desconfio que provavelmente enlouqueceria.
Isto dito, depois de completar cinqüenta anos, resolvi que passaria a andar, no mínimo, a tal da meia-hora por dia que dizem ser essencial a um coração saudável, já que nunca fui pessoa de brincar com assuntos de coração.
Adotei um caminho que tem uma subida de cerca de um quilometro, no topo da qual existe um parque e, do outro lado da rua, uma padaria.
Ali, depois do parque, me acomodo em uma mesinha do lado de fora, tomo um ou dois cafés, fumo um cigarro e leio um pouco – sim, eu ainda fumo – e depois volto para casa descendo a ladeira pelo outro lado da rua.
Esse passeio tem dois pontos altos: o parque e a padaria.
O parque – ao redor de uma caixa d’água daquelas da minha infância – tem quase tudo que se pode querer de um parque de bairro. Crianças, mamães, um ou outro papai ocasional, babás, tanquinhos de areia, bancos à sombra e ao sol, gente fazendo ginástica, desde aquelas do tipo ordem unida até tai-chi, coroas caminhando, uns com mais e outros com menos vigor. Tudo isso cercado de muito verde: belas árvores, pequenos jardins e canteiros de flores e trilhas de cascalho serpenteando por tudo. Só não tem água.
Digo, um laguinho, uma fonte que seja. Nem sequer uma bica para remédio. Bem brasileiro isso de um parque conhecido como “o parque da caixa d’água” não ter nem um espelho de água. Paciência. Gosto dele assim mesmo.
Dou minhas voltas e me dirijo para a parte Real do meu passeio matinal.
A Real não é bem uma padaria, para falar a verdade, e fez por merecer o nome. Não vende paõzinho, por exemplo, como se esperaria de uma mera padaria. É restaurante, é lanchonete, e é também uma bela petiscaria, enfim: é única. Mas por conta do passado, acho que a vejo como uma padaria. Existe desde 1934 ou 1937, como mercearia, conforme quem conta a história. De acordo com uma enorme fotografia na parede, começou suas atividades em 1937. Mas um passarinho me contou que começou com apenas uma portinha aberta em 1934. Depois a Rádio Excelsior instalou-se por perto, bem mais tarde a Tupi, rádio e depois TV. Hoje é vizinha da MTV. Podemos dizer que por ali passou e passa uma boa parte da história da televisão e do rádio do país. De Walter Foster e Vida Alves até João Gordo, Léo Madeira e Chico Cézar, que acabou de passar por mim, aliás. Tomo meus cafezinhos, fumo meu cigarro e leio meu livro. Às vezes, encontro um amigo ou uma amiga, e, quando isso acontece, o passeio estica mais um pouco. O Josivan e o Valdo são convocados para trazer outros cafés, e o tempo passa embalado em dedos de prosa.
A ladeira da volta para casa também tem seus pontos altos, se é que posso fazer a piada. Um sebo grande e sortido e uma vídeo-locadora recomendada pelos cinéfilos, onde, por exemplo, se acham filmes que são difíceis de ser encontrados em outros lugares. Ateliês de artistas amigos também são paradas possíveis, agradabilíssimas, pois este é um bairro especialmente bem aquinhoado de artistas.
São Paulo é uma cidade misteriosa, secreta até. Só se revela para aqueles que têm a paciência e a curiosidade amorosa de querer vê-la bem de pertinho.
Aí é linda.

Bar e Café Estrela do Sumaré


Na primeira vez, acabara de mudar para o bairro e, por acaso, entrei para comprar provavelmente um maço de cigarros. Alguém me cumprimentou efusivamente. Era o Beto. Conheci-o quando me convenceu a colocar aquecimento solar em minha nova casinha. Não me arrependi.
Quem olha praticamente não os vê. Eles são tanto parte da paisagem nessa cidade, que nem os notamos individualmente. São os bares de esquina, os botecos, os botequins. Toda esquina tem um. Mas são todos especiais, particularíssimos.
Sempre que quero companhia, sinto falta de um dedo de prosa, de dar uma risada ou de falar sobre o jogo da noite anterior, é para o meu boteco que vou.
São, talvez, os últimos redutos machistas que restam na cidade. Verdadeiros clubes do Bolinha. As mulheres têm toda razão, fala-se do que elas acham que os homens falam nesses lugares: de futebol, delas mesmas e de política. Nesta ordem. Trocam-se piadas, fala-se mal das patroas (é assim que se referem às esposas) e discute-se, é claro. Sobre tudo. É um lugar onde todo mundo tem razão, e ninguém liga muito.
Mas esse meu boteco é único. Naturalmente fica em uma esquina, não muito longe de uma agência da Caixa Econômica. Tantos funcionários desse banco freqüentam o lugar que ele poderia perfeitamente se chamar Caixa Dois.
Mas conheci ali tipos imperdíveis. O Marcos, que é a cara daquele cineasta americano que fez Tiros em Columbine, virou um grande amigo. O Beto, que já mencionei. Seu César, conselheiro do Palmeiras e velho habitante do bairro. Contou que o quarteirão, onde hoje moro, já teve um clube-cassino, chamado Marajoara. Disse-me que, em dia de chuva, ninguém conseguia subir a avenida Pompéia, que era então de terra. O seu Aramis, sempre de bermudas, meias, sapatos escuros e bengala, presença cotidiana indispensável. Num desses dias de muita chuva disse-me que tinha a solução perfeita para as enchentes de São Paulo: “é só inverter o rio e jogar toda a água na Serra do Mar”, me garantiu. Devia ser candidato a prefeito. O chofer de táxi, com um sorriso mais malandro que já vi e um rabinho de cavalo que... Bem, deixa para lá. O Grego, que já foi o rei do jazz nessa cidade, às vezes, com o sorriso mais orgulhoso do mundo, passa pela porta do bar, de mãos dadas com a filhinha pequena, lança-me um olhar enviesado de reconhecimento, mas não pára. Aquele não é lugar para meninas, muito menos as pequenas. O Chico Rosa, pintor e escultor, aparece de vez em quando. O Pessini e o Adriano, grandes artistas e memórias ambulantes do bairro, da cidade e do país, brindam-me, pacientemente, com a História e as estórias da minha terra e da minha gente. Tantos personagens. O lugar é democrático, todos têm sua vez, não importa se são estudados ou não, se têm mais ou menos dinheiro, mais ou menos idade. Todos são bem-vindos, têm sua vez e são atendidos com a mesma delicadeza pelo Jenival ou pelo João, donos atentos e eficientes.
Ao redor das cinco e meia, seis horas da tarde, aparecem todos por lá para assistir à “parada”: o desfile cotidiano das belas moças de todas as idades que passam saindo do trabalho e indo para casa, para a padaria, para o ponto de ônibus. Todas ganham seus olhares, comentários de apreciação, a admiração de seu público. São raros os elogios mais grosseiros, não que não aconteçam, mas são raros.
Não é o único bar de esquina da área. Depois descobri outros. O do Antônio e da Gorete, por exemplo, com um bolinho de bacalhau de primeiríssima qualidade. Aí conheci a Mirtes, outra grande figura, a exceção que confirma a regra, aceita no “clube” sem questões, boa de papo e dona de excelente humor.
Há, é claro, a população flutuante dos que bebem, indo a cada dia em um deles, de modo que ninguém vá achar que bebem muito. Mas os donos de botecos desta cidade têm olho vivo, ética e coração. Não vendem álcool antes das dez da manhã e exercem seu bom senso: quando acham que o sujeito bebeu demais, já vão avisando e não lhe servem mais bebidas. “Vai para casa, fulano, que pra você acabou a cerveja”, como já ouvi o Antônio dizer, mais de uma vez.
Essa minha cidade e seus botequins de esquina! Como iríamos viver sem eles? Sem o torresmo, sem a coxinha e sem a rabada de aperitivo. Sem a cervejinha de todo fim de tarde. O que seria de nós sem esses pontos de encontro e de alegria, de amizade casual e companhia. Sem esses verdadeiros templos da camaradagem paulistana.

Rúadas


Corrida: em cruzamento com semáforo, uma pessoa fica na ilha, diante da faixa de pedestres, imóvel ou ligeiramente hesitante, até que a luz fica verde para os carros. Nesse instante, suicidamente, sai correndo pela faixa em direção ao outro lado, na frente dos carros.
***
Invisibilidade: andar uns quatro passos atrás de uma mulher deslumbrante, no vácuo dela.
***
Bailado: duas pessoas param uma em frente da outra e se movem lateralmente, para o mesmo lado e ao mesmo tempo, procurando passagem. Dura alguns segundos.
***
Habitantes: loucos de rua sempre usam alguma coisa à guisa de chapéu, moradores de rua não.
***
Sapatos: ou solteiros no meio da rua, ou em pares pendurados nos fios.
***
Ambulantes: a ausência quase total de mendigos calvos.
***
Trânsito: no mesmo instante em que a luz do semáforo fica verde, um segundo motorista toca a buzina.
***
Transporte: ônibus que pára fora do ponto para que desça ou suba alguém especial, uma mulher bonita, um senhor de idade ou um amigo.
***
Tráfego: quanto maior o tráfego de pedestres nas calçadas, maior a tendência de eles usarem a mesma mão de direção dos carros.
***
Passagem: a guerra cotidiana entre o direito de passagem dos pedestres e os carros que saem das garagens.
***
Cortesia: desviar o jato ou desligar o esguicho para a passagem de um pedestre quando se está lavando a calçada.
***
Tarde: cachorros que dormem placidamente quase no meio da rua e saem preguiçosamente quando um carro buzina pedindo passagem. Somente em ruas de muito pouco trânsito.
***
Vista: gatos ou cachorros pequenos dormindo em janelas que dão para a rua. Ou então observando o movimento.
***
Caminho: barquinhos de papel descendo pela enxurrada junto ao meio-fio. Coisa rara hoje em dia.
***
Sede: pedir para dar um gole de água na ponta da mangueira de quem está lavando a calçada. Geralmente pré-adolescentes.
***
Solução: carros que vêm na contramão por pequenos trechos, para alcançar uma garagem ou uma esquina. Sempre apressados e andando junto ao meio-fio. Em ruas de pouco movimento. Nas mais trafegadas, o trecho é percorrido de ré.
***
Beijo: uma mãe que, todos os dias, no mesmo horário, beija os filhos na saída para a escola. Eles para um lado, uniformes e mochilas em disparada. Ela para o outro, para a igreja.
***
Visão: gato preto que passa rápido à frente de um carro à noite. Olhos que brilham como faróis.
***
Cortada: pessoas a pé que ultrapassam pela direita e subitamente cortam a sua frente para entrar em uma loja, por exemplo.
***
Roleta-russa: pessoas que saem de lojas e atravessam a calçada em direção ao meio-fio sem olhar.
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Sábado Perfeito


Imagine um sábado de manhã. E já que estamos imaginando, vamos imaginar que é um sábado de sol, no outono, quando o céu tem aquele azul mais fundo, mais do que o normal no resto do ano. O programa é sair lá pelas nove e pouco da manhã e ir para o centro. Chegar ao redor das dez, parar o carro na Rua Santo Antonio e caminhar até a Praça João Mendes. É lá que está o Sebo do Messias. É sempre bom ir ao Messias. Afora o gosto de fuçar nas estantes e ver livros e mais livros, sempre se acha alguma coisa. Por cerca de meia hora. Às vezes de posse de verdadeiros tesouros, caminhamos do centro velho ao centro novo, cruzando o Viaduto Sta. Efigênia, e entramos na rua do mesmo nome. Não sei vocês, mas a minha experiência de procurar alguma coisa nessa rua é assim: no número 100 dizem que não tem o que você está procurando, mas que no número 165 tem. Lá por sua vez, dizem que no 259 tem com certeza. E assim por diante. Sempre achei que isso era combinado no clube dos lojistas para fazer com que todo mundo percorresse a rua inteira. Eu gosto da Rua Sta. Efigênia e seus milhares de badulaques eletrônicos, mas hoje nosso programa é outro.
O negócio é chegar no Bar do Léo no máximo às dez para as onze. É a última chance de pegar uma mesinha. É um bar singular esse. Pequeno, localizado na Rua Aurora, vizinho a uma área decadente da cidade (a cracolândia), fica absurdamente lotado aos sábados e se é servido em pé na calçada freqüentemente. Todo mundo concorda que tem o melhor chope da cidade (colarinho de exatos três dedos, nem mais, nem menos), mas, o que poucos dizem, é que tem disparado o melhor bolinho de bacalhau da cidade. Já fui até lá no fundo ver como é feito. Ao redor de um tacho com a massa do bolinho, duas mulheres enrolam um a um com a mão. Parece um charuto, só que gordo no meio e com as pontas fininhas. Charuto de desenho animado, digamos. É enorme, talvez uns 15 centímetros. É bolinho de bacalhau para ninguém botar defeito. Pra lá de delicioso. Agora, veja a perversão: só sai aos sábados e às quartas um pouco depois das onze da manhã e acaba ao redor das quatro da tarde. As porções são de seis bolinhos. Sugiro comer com a pimenta da casa que é saborosíssima. É bem verdade que são caros, mas por outro lado não têm preço. O Bar do Léo tem também petiscos incríveis, entre eles um de beef tartar. Bem, nem meia hora depois, já não há sombra de mesa e as pessoas começam a se juntar na calçada. O chope não pára, os garçons não esperam que ninguém os peça, vão trazendo um atrás do outro e empilhando as bolachas. É assim, desse jeito tradicional, hoje quase desaparecido, que se faz a contabilidade. Eu não acredito em astrologia, mas nesses sábados meu ascendente é em Léo.
Dali, o programa continua com a volta a pé para o carro, digerindo os chopes e os bolinhos, e rumar para o Jardim Marajoara, onde está localizada a famosa Sauna Finlândia. É uma sauna como antigamente, como deviam ser as termas da Roma antiga. Em um prédio com três andares, senhores gordos e outros não tão gordos, andam para baixo e para cima, entre as duas saunas secas e a sauna a vapor. Curtem a massagem com hora marcada, a ducha escocesa, a piscina, a vassourinha dentro da sauna seca – não me perguntem como é uma ‘vassourinha’, quem sabe, sabe, e quem não sabe que vá lá descobrir –, e um bar com as boas cervejas tradicionais. Todo o estresse, a tensão, os dissabores e o trânsito da semana inteira saem pelos poros. Sai-se dali com as pontas dos dedos enrugadas e pronto para outra.
A outra, no caso desse sábado perfeito, é ir ao Lo Spuntino no Planalto Paulista. É um bar de bairro com cervejas do Brasil e do mundo inteiro. Que eu saiba, eles são os únicos a servir uma cerveja de Mato-Grosso que, na minha modesta opinião, é a única do Brasil que é páreo para a Guinness. A Bugrinha. Uma cerveja preta absolutamente perfeita. Pode ser acompanhada por porções de bolinhas de queijo muito bem feitas. Ali, em uma mesinha na calçada, as horas passam despercebidas e o papo rola solto.
Daí é voltar para casa e quem sabe, se sobrar disposição, coroar o sábado indo comer a pizza da casa, aquela com mussarela e calabresa fatiada. Na Pizzaria Castelões, é claro.

Viagens


Era o início do Plano Real e, milagre, a moeda brasileira valia o mesmo que um dólar. Depois vimos que aquilo simplesmente não era possível, mas naqueles anos muita gente aproveitou a maré para viajar. Eu entre eles.
Pois então, estava eu lendo o NY Times, seção de livros, espichado em uma cama de hotel, quando uma resenha me chamou a atenção. Era sobre um livro policial de humor. Sempre gostei de livro policial com humor e já tinha lido todos do Donald E. Westlake, por exemplo. Esse era de um autor de quem eu nunca ouvira falar: Lawrence Block. Levantei, dirigi-me imediatamente a Barnes & Noble e comprei o livro. Como na estante havia outros do mesmo autor, adquiri mais uns tantos para ler quando voltasse para casa.
Gostei muito do livro, mas mais ainda da série que o autor escreveu com um detetive existencialista, chamado Mathew Scudder. As aventuras do Scudder sempre se passam em Nova York e são interessantíssimas.
Fiquei pensando na cidade e do quanto não a conhecia. Na viagem seguinte, resolvi ver se os lugares freqüentados pelo detetive na cidade eram verdadeiros ou fictícios.
Todos eram reais. Por conta disso, fiquei conhecendo uma Nova York que não experimentaria de outra forma: desde o Armstrong, um pub e restaurante irlandês, com um excelente irish stew (um cozido feito de carneiro, batatas, cebolas e salsa, geralmente com as partes menos nobres do animal, bem à moda da nossa feijoada); até uma reunião dos Alcoólicos Anônimos no porão da igreja St. Paul, na rua Cinqüenta e Oito, onde pude participar e ouvir as histórias de vida não tão glamurosas, mas cheias de dificuldades de muitos habitantes da cidade. A missa dos açougueiros, às seis da manhã, na rua Quatorze, quando eles comparecem com seus aventais brancos ainda manchados de sangue e depois voltam ao trabalho e uma igreja linda, na rua Vinte e Três, onde assisti Murder in the Cathedral, do T.S. Eliot.
Foi uma viagem deliciosa. Quando voltei para casa, resolvi escrever uma carta ao autor dizendo do passeio que tinha feito e da Nova York improvável que tinha conhecido graças a seus livros. Mandei a missiva aos cuidados de uma livraria, chamada Mystery Bookshop, que sabia que ele freqüentava.
Para minha surpresa, o autor respondeu muito gentil e simpático, comentando os lugares que eu tinha ido e sugerindo uns tantos outros que ainda não apareceram em seus livros. Escritores são pessoas muito mais acessíveis do que nós – eu com certeza – leitores, imaginamos.
Por coincidência, logo a seguir, ele teve seu primeiro livro em português lançado no Brasil. A Folha de S. Paulo fez uma resenha. Achei de mandar a tradução para ele e, depois, mandei também uma crítica altamente elogiosa ao livro, escrita pelo Ivan Lessa na Veja.
Já estávamos na base do e-mail para lá e para cá. Agradeceu-me muito e convidou-me para uma inauguração em Nova York, em julho do ano seguinte.
Atrás da Biblioteca Pública dessa cidade, na 5a avenida, há um parque, chamado Bryant Park, que era ocupado por traficantes de drogas e usuários. Para recuperá-lo, a direção do parque resolveu ocupá-lo com outras atividades. Decidiu oferecer bancos com o nome de personagens de autores nova-iorquinos, além de promover récitas poéticas, música, leituras de peças e shows.
Era para a inauguração do banco com o nome de seu personagem Mathew Scudder que Lawrence Block estava me convidando. Fiz meus planos e resolvi comparecer.
Essa outra viagem foi um pouco mais estranha. Poucos dias antes de embarcar me descobri diabético. Cheguei na cidade uns quarenta dias antes da inauguração do banco e aluguei um carro. Fui na vaga direção do Canadá, parando onde achava bonito ou interessante. O museu do Norman Rockwell, em Stockbridge, por exemplo, dentro do rancho em que morava e onde pude visitar seu estúdio de pintura exatamente como o deixou. O problema que tornou a viagem estranha foi que meu médico dera-me um remédio para baixar a glicose, sem saber que eu ia começar um regime de dieta e exercícios para emagrecer. Andava a pé por umas duas horas ou mais, todas as manhãs ao alvorecer. Aproveitei-me das inúmeras ofertas de delícias sem açúcar dos Estados Unidos. Não deu outra: passei a ter hipoglicemia todos os dias. Primeiro dava uma tontura, depois suores frios e uma sensação de que ia desmaiar. Muitas vezes estava dirigindo quando isso acontecia. Precisava parar no acostamento e comer açúcar imediatamente. Depois de uns tantos dias dessa tortura, parei em uma cidadezinha, procurei uma livraria e comprei três ou quatro livros sobre diabetes tipo II. Enfurnei-me em um hotel até lê-los todos. Daí para frente, as coisas melhoraram muito. Suspendi o remédio e passei a controlar o diabetes com dieta e exercícios – coisa que faço até hoje. A viagem ficou ótima.
Depois de um longo passeio pela Nova Inglaterra e o Canadá, com direito a Niagara Falls e Ville de Québec – com o belíssimo Châteu Frontenac, um dos hotéis mais charmosos do mundo, cartão postal dessa beleza de cidadezinha –, voltei lentamente para Nova York, serpenteando por Vermont e pelo Maine e suas lagostas, para meu encontro no parque, com Lawrence Block.
Embora esses encontros com escritores que admiro sempre me deixem tímido, Lawrence Block foi muito afável e cordial e me presenteou com livros seus, com direito a dedicatória e tudo. Conversou um pouco comigo enquanto a multidão de presentes aguardava. Foi tudo muito bom no geral. Tenho uma foto, tirada no dia seguinte, sentado no banco do Mathew Scudder.
Hoje me é muito mais difícil visitar a América do Norte. Nossa moeda foi trazida de volta à realidade, as torres gêmeas foram derrubadas e forças retrógradas estão no poder por lá. Nunca mais voltei e tenho a impressão de que, em um certo sentido, nunca mais vou poder voltar. Os lugares e as pessoas já não existem mais como eram, a Terra deu várias voltas ao redor do sol e o que passou, passou, não volta mais.

Lugares / Paisagem Noturna


Outro dia um grande amigo perguntou, a si mesmo ou a mim, não sei bem, quanto vivem e como morrem os bares na noite de São Paulo.
Achei a pergunta interessante.
Meu primeiro bar, na década de setenta, o Riviera, era na Consolação perto da Paulista. Os tempos eram difíceis e não eram muitos os lugares onde as pessoas podiam se reunir. Apesar do clima político asfixiante que reinava na cidade e no país, o lugar era uma festa. Todo mundo ia lá. A casa viu passar tanta gente criativa e inteligente que até seus garçons tiveram seus quinze minutos de fama. Foi o Paribar da minha geração. Ao lado havia o famoso Ponto Quatro, que tinha o melhor – e maior – filé a parmigiana da cidade. De tão macio, era cortado com uma colher pelo garçom.
Meio que na mesma época apareceu um barzinho estreito, ao lado de uma churrascaria no centro, chamado Mais Um. Ia lá de vez em quando, mas a população era mais ou menos a mesma do outro bar.
Depois veio o Lei Seca... Era distante, depois da estátua do Borba Gato, mas fez um sucesso tremendo. Com música ao vivo, se bem me lembro, a conversa para lá de animada: era um lugar transado, cheio de pessoas interessantes.
Muitos anos mais tarde, depois de casar e criar filho, lá estava eu, de volta à noite. Foi quando abriram o Speakeasy. Um bar pequeno, com música de primeira, situado na Consolação, logo abaixo da Oscar Freire. A calçada em frente ficava cheia de gente querendo entrar ou sair. Era tão bom que até ficar na frente, sem entrar, era programa.
A seguir veio a era dos pubs. Já mais velho, sentia-me melhor entre as madeiras e as cervejas escuras. O primeiro deles, se não me engano, foi o Queen’s Legs, ali na Mello Alves. Jogavam-se dardos, conversava-se com estrangeiros, residentes ou de passagem, um ambiente muito inglês e muito civilizado.
Lembro-me de outros, que não duraram muito, mas que ficaram conhecidos em sua época, como o Jungle e, anos depois, o Van Helsing, em frente ao cemitério, na Cardeal Arcoverde.
Todos cujos nomes mencionei já não existem mais. Vieram e se foram com suas turmas e seus freqüentadores.
Muitos outros, no entanto, estão aí até hoje. Esses souberam se renovar. Não no sentido de fazer uma reforma nas instalações, mas de atualizar, inspirar novos grupos de freqüentadores, criando novas histórias, deitando raízes mais profundas.
Voltei àquele primeiro bar outro dia. Estáva no mesmo lugar, praticamente igual. Estavam lá as mesas e as cadeiras, o balcão de fórmica vermelha, a escada curva da década de cinqüenta, beirando a parede de tijolos de vidro, as colunas, e até o mesmo dono empoleirado atrás da mesma caixa registradora.
Mas o Juvenal e o Zé, os inesquecíveis garçons, não estavam. Tampouco o zunzum, o entra e sai e o ar enfumaçado, nem ninguém que eu conhecesse ou que já tivesse visto. Olhei bem, prestando bastante atenção e, de repente, me dei conta: eu também não estava lá! Eu era apenas um fantasma arrastando minhas correntes, de visita ao velho castelo.
Um bar não é um prédio, um endereço ou um nome. Um bar é um momento no tempo, um conjunto de circunstâncias. São pessoas comparecendo a um encontro sem terem combinado. É um lugar onde todos te conhecem, e você conhece todos, mesmo que só de vista, como naquele antigo seriado da TV. Um bar é o cruzamento de histórias simultâneas, amores à primeira vista, coincidências, amizades de ocasião, pares desfeitos e noites memoráveis. É uma estrela de mercúrio iluminando a paisagem noturna. Pode ser uma estrela cadente ou uma supernova, durar muito ou pouco no universo físico, não é isso que importa.
Bares não morrem. Mesmo os que se foram, não morreram. Apenas ficaram invisíveis. Vivem na memória das pessoas e na história da cidade.
Brindemos a eles.

Edifícios Finos I - sp


Última Rodada


Segunda para terça-feira, 20 de julho de 2004.
03:45 da manhã: Saio do bar, logo antes da ponte que passa sobre a avenida. O carro, estacionado praticamente na frente do bar, foi deixado com a luz interna acesa e está sem bateria. Peço a uns manobristas, parados conversando em frente ao bar, que me ajudem a empurrá-lo para que pegue no tranco. Enquanto isso, um desconhecido bate num carro que estava passando, e este é desviado para rente à traseira do meu veículo e atropela, com violência, uma das pessoas que estava me ajudando. Esse homem é arremessado à cerca de dez metros de distância. Antes que o corpo caia à minha frente, vejo de relance um veículo pequeno e de cor escura que desaparece em alta velocidade. A visão do corpo que cai impede que eu veja a placa. Na colisão, o automóvel agressor perde seu espelho retrovisor direito que fica na pista.
O resgate é chamado. Vários minutos depois, a vítima é levada para o PS do Hospital das Clínicas, onde é encaminhada, com politraumatismo, à UTI.

Domingo, 18 de julho de 1993.
12:30: Meu pai morre atropelado na esquina da alameda Lorena com a avenida 9 de Julho.

Domingo, 18 de julho de 2004.
11:30: Aniversário de 11 anos da morte de papai.
Fomos, minha mãe, meu irmão e eu, à missa que meu pai havia assistido em seu último dia. Assistimos em silêncio sentido, a mesma cerimônia. Como todos os anos, logo de manhãzinha eu tinha ido colocar uma rosa em seu túmulo.


Segunda para terça-feira, 20 de julho de 2004.
03:31 da manhã: Recebo o ticket do Mastercard: 14 reais.
Assino e devolvo.
Ainda não sabia, mas tinha acabado de pagar meu último uísque.

Tio Plácido


Eu morava em um porão na rua Pará. A casa era alugada por um encanador que tinha uma oficina, onde era a garagem, e sublocava os diversos quartos para uma variedade de pessoas. Lembro-me de um indiano da África do Sul que era marceneiro. Quando desistiu do Brasil e voltou para a África, me deixou de herança todas as suas ferramentas. Havia outros vizinhos que ocupavam quartos na tal casa de cômodos. Tinha o João, a respeito de quem já escrevi, e uns cariocas que mudaram para o porão maior, entre outros.
Ignorada pelo dono do cortiço, a maioria dos habitantes era adepta do consumo de um fuminho. Quero dizer, maconha – que deveria se chamar “boaconha”: erva, diamba, jererê. Era a década de setenta, quando ter cabelo comprido, usar roupas largas e fumar um bagulho era uma forma de resistência cultural à ordem então vigente. Éramos, portanto, com exceção do dono do lugar e seus clientes, naturalmente, uma comunidade fumante e alternativa.
Foi então que um dos cariocas, de quem não lembro o nome, comunicou a todos que seu pai vinha de visita e seria melhor a gente se cuidar um pouco com os papos e o consumo mais aberto dos baseados.
Ele veio. Magro, alto, já de cabelos brancos e óculos de grau, tipo fundo de garrafa. Boas pedras e cordato, não enchia o saco de ninguém e era excelente papo. Tinha sido boêmio a vida inteira, freqüentador da Lapa, no Rio, do Cassino da Urca, do Hipódromo da Gávea, personagem de mil aventuras que ia contando aos interessados. Gostei da figura imediatamente.
Seu nome era Plácido. O título de Tio foi imediatamente anexado. Tio Plácido.
Depois de um tempo, foi ficando complicado viver a vida escondida dele e, em uma reunião em meu quarto, decidimos “abrir”, como se dizia à época, pro Tio Plácido. O encarregado foi seu filho. Ele, com todo o cuidado, explicou para o pai que fumávamos, que não fazia mal e que era bem melhor do que o uísque que ele gostava de bebericar. A reação dele não poderia ter sido melhor: “olhe, meu filho, se vocês estão fumando é porque deve ser uma coisa legal, que eu não criei filhos bobos: quero experimentar”.
Quando recebemos a notícia a alegria foi geral. Tínhamos que armar uma ocasião e um lugar para o portentoso evento. Afinal era a primeira vez que iríamos “aplicar” uma pessoa mais velha – estávamos todos ao redor dos vinte anos, e ele já para lá dos seus cinqüenta.
Um amigo da turma tinha um apartamento alugado na avenida São Luís, enorme, daqueles com coluna no meio da sala, esparsamente mobiliado. Nos reunimos todos lá, em uma determinada noite, com um fumo criteriosamente escolhido pelo João, o expert da turma no assunto. Enrolamos alguns baseados, providenciamos o mitológico suco de laranja, caso ele não gostasse – havia o mito, naquele tempo, de que suco de laranja cortava o efeito –, e comidinhas para quando batesse fome. Acendemos os “charos” e botamos na roda com o cuidado de não deixar o coroa fumar demais na primeira vez.
Sabe como é nessas situações, quem não experimentou já deve ter pelo menos visto em filme. A conversa ficou difusa, o ambiente enfumaçado, muita risada e muita fome. A famosa larica.
Depois de um tempo, notamos que Tio Plácido estava sentado em uma poltrona, o olhar meio perdido na distância.
Perguntamos: “E aí, Tio Plácido?”
Ele demorou um pouco e disse: “Eu estava aqui pensando numa casinha lá longe, com uma janela acesa e todo mundo que eu gosto dentro... Será efeito?”.
Concordamos todos às gargalhadas. “É sim, Tio Plácido, é efeito”.
Desse dia em diante largou o álcool e virou adepto. Toda hora queria fumar um, classificava os diferentes tipos e dava sua opinião de recém especialista.
Anos mais tarde, em uma viagem ao Rio, resolvi procurar por ele. Parecia um velho hippie e estava ocupadíssimo arrumando suas coisas para colocar em uma camionete Bandeirante e ir tentar a vida na Transamazônica: “é a nova fronteira”, disse convicto.
Nunca mais soube dele e não sei o que é que deu. Mas hoje amanheci anos setenta, senti uma saudade imensa dele e daqueles tempos mais ingênuos quando ainda era possível cruzar com doces tios plácidos.

Carta a uma amiga


Amigo seu,

realmente sou,
digo da tristeza
de ler o que escreveu,
de receber o que mandou.
Ligas para um,
ligas para outro.
Um dormiu, outro não pode,
então “catou” um na anete.
Que pena,
que coisa mais triste,
seu pulso e impulso.
A mim parece outra espécie, a sua,
não compreendo fazer amor sem amor,
é comer sem apetite,
prato de ânsia e agonia,
comida sem sabor.
Uma atração,
a partir de um olhar,
de um roçar, do olho no olho –
estranhos na noite.
Mais para beef tartar do
que para caviar, dá para aceitar,
ver que da atração, da química,
pode nascer um calor, uma possibilidade
de um amor.
Seu virtual é sem virtude,
sua recompensa não tem valor,
eu, por um, não quero parte nem abrigo
nesse seu horror.
Nem imagino a aposta,
sei muito bem quem é o perdedor.
Posso ser teu amigo, paciente e antigo,
jamais seria um seu amor,
mais um na longa e triste lista
deste seu despudor.

Long John Silver


Pois é, João...
Eu tinha lá pelos meus dezessete anos. Meu melhor amigo havia ido para a Europa de navio. Fui até levá-lo ao porto, em Santos, e entrei para visitar o barco e tudo. Mas na volta – deve ter sido solidão –, na subida da serra, resolvi que precisava mudar alguma coisa na vida e, como não podia ir à Europa também, resolvi sair da casa de meus pais e morar sozinho. Pareceu-me uma ótima idéia.
Com meus parquíssimos recursos – era balconista de uma livraria na Barão de Itapetininga –, só tinha dinheiro para morar em quarto de pensão. Como havia algumas na rua Marquês de Paranaguá, na rua Augusta, na rua Caio Prado e vizinhanças, toquei para lá.
Estou no primeiro banco do tróleibus da rua Augusta, no ponto do Conjunto Nacional, quando você me reconhece da calçada e me convoca a descer. Juro, essa é a primeira lembrança sua que tenho. Você na calçada me chamando para descer do ônibus e conversar.
Acho que não estava acostumado a ser gostado, ou lembrado, ou que fizessem questão de mim. Por isso desci.
Pra encurtar, conversa vai, conversa vem, você sabia o lugar perfeito para eu morar. Naquela mesma casa de cômodos onde também morava, na rua Pará.
Grande lugar. Lembro-me das brigas das putas de madrugada, na esquina da Angélica; do quartel no meio do quarteirão – acho que ainda está lá –, em frente ao supermercado. Lembro-me também do seu quarto: era um velho banheiro, daqueles antigões, com pé direito alto, e que você, criativo e cheio de recursos como sempre, dividiu ao meio, na altura, é claro. Embaixo, a “sala de visitas”, com almofadões e tapetes – como era moda naquela época pazeamor – e um depósito de guardados. Em cima, o quarto com colchão, lâmpada de cabeceira e despertador. Na borda você cortou a madeira que servia de piso do andar de cima, de tal forma que virava uma prancheta de desenhista durante o dia. Aquele banheirão era o quarto mais incrível do cortiço. O meu, por outro lado, desde o início me anunciava metido a bacana: era um dos dois grandes porões da casa, com arcos ao fundo e umas impressões de mãos na porta. Disseram-me que era um costume egípcio. Meu pai até bancou um telefone só para mim, um luxo naqueles tempos. A gente acabava se reunindo lá.
Lembro-me da vez que você roubou um Karmann-Guia e me levou para dar uma volta alucinante por Higienópolis. Só me dei conta de que era roubado quando vi a ligação direta... ê medo!
Você era um passador de fumo como nunca mais vi na vida...
Na década de setenta, tirando os a favor dos militares, uns estavam na política clandestina – para derrubar a ditadura –, outros eram cabeludos e queimavam fumo, pelo menos os que queriam mudar o mundo sem ser pelas armas. Eu era desses segundos. Não conhecia ninguém na época com outras escolhas.
Organizado, você tinha uma agenda com nomes, telefones e quantidades habituais. Vendia as “bolsas” (era assim que se chamavam) todos os dias de segunda a sexta. Lá pelas nove da manhã, aparecia no meu quarto para usar o telefone e combinar as entregas do dia. Nunca mais do que cinco. Todas meticulosamente pesadas e fechadas em saquinhos plásticos.
Mas você queria mesmo era ser desenhista ou arquiteto...
Ouvi as histórias de suas conquistas, das sacanagens que tinham feito com você e das que você tinha feito de troco, das escapadas por um triz, como aquela lá no Riviera, lembra? Teve aquela vez que, marotíssimamente, induzimos o dono do cortiço a falar sobre maconha, do quanto ele era esperto e sabia reconhecer “maconheiros” de longe. Demos tanta risada dos maneirismos e das falas de “expert” dele, lembra disso?
É, João... Antes daquela viagem para o Mato Grosso, para comprar uma partida de fumo, você pediu para dormir no meu quarto, não queria ficar sozinho, você me disse. Coisa inédita. Achei um privilégio ficarmos conversando até tarde.
Uns dias depois, alguém me acordou logo de manhã e me mostrou a manchete de jornal com o acidente em que você morreu. Você e aquele moleque que te acompanhou para levantar uma grana.
Foi a única vez, que me lembre, que fiquei em choque. Demorei mais de meia hora para entender e integrar o que tinha acontecido. Nem quando morreu meu filho ou quando meu pai se foi, tive reação igual. Acho que é por ter sido a minha primeira morte.
Posso lhe dizer, até com certo orgulho, que quando achei o depósito, na sua sala de visitas, com todas as diferentes amostras de fumo, catalogadas, separadas em saquinhos, e um primoroso trabalho escrito, classificando cada tipo por efeito, potência e origem, uma coisa que ninguém sabia que você fazia, resolvi dividir tudo entre seus amigos. Todos os que eu conhecia fumaram do seu arquivo secreto em sua homenagem. Foram um ano e um episódio inesquecíveis.

Ela


Ela vem vindo.
Sei disso pelos sinais.
Na primeira vez foi um relance. Estava distraído e depois fiquei me perguntando se não tinha sido imaginação. Uma figura morena, fugidia, passando numa fração de segundo pelo canto do olho.
Depois achei tê-la visto no supermercado. Daquelas coisas: entrava no estacionamento quando ela saia, de novo, muito pouco tempo para ter certeza. Estava loira, de branco e azul, rabo-de-cavalo e um ar de quem acabara de sair do banho. Parecia a primavera.
Na vez seguinte, senti apenas o perfume. Estávamos no mesmo escuro de cinema e não podíamos estar a muitas fileiras de distância. Procurei-a, nas cenas mais claras do filme, mas não houve jeito. Havia muita gente, acho.
Ou então ainda não era hora.
Outro dia vi-a pela primeira vez de frente. Tinha acabado de tomar um espresso e estava acendendo um cigarro quando a vi. Uma blusa simples, cabelos avermelhados, lisos, calça jeans. Estava quase entrando no lado do passageiro de um carro enquanto alguém – talvez sua mãe, talvez uma amiga mais velha – abria a porta do motorista. Parei logo adiante para vê-la de novo. Seu olhar cruzou com o meu por um instante quando o carro passou.
Foi ali que tive certeza absoluta. Estava claro. Sinais inconfundíveis: ela vinha vindo.
Às vezes, de manhã bem cedinho, quando o ar frio está mordendo e o dia parece novinho em folha, fico imaginando como ela será. Que estranhas manias terá, quais hábitos de menina, se aperta o tubo no fim ou no meio. Será que sai do banho com a cabeça enrolada na toalha, como num filme, ou será que tem cabelos curtos e sai pra rua com eles ainda molhados?
Estou ansioso para saber sua cor favorita, qual filme que mais a fez chorar e se alguém já lhe partiu o coração.
Quero saber se têm irmãos, como se dá com os pais, se já sabe o que vai ser de sua vida.
Mas principalmente, gostaria de saber se já percebeu, se já viu os sinais também. Se me pressente.
Eu por mim já sei, não tenho mais dúvidas:
Ela vem vindo.