26.9.07

O Barão


A tarde estava pedindo uma brisa e simplesmente não dava para ficar em casa. Sendo sábado, fui tomar uns ares, um suco e ver gente, que sou desses que se morasse em cidade pequena ia ter calo no cotovelo de tanto ficar na janela vendo o movimento.
Fui para a Benedito Calixto e cheguei antes da multidão. Consegui uma mesinha no restaurante Consulado Mineiro e um suco de laranja à minha frente. Tudo de acordo com as expectativas, coisa rara de acontecer em São Paulo.
Numas mesas mais para lá, uma turma alegre estava cantando sambas. A pessoa que as animava prendeu minha atenção. Primeiro pela escolha de repertório, vejam vocês, ele estava cantando e tocando nada mais nada menos que Jackson do Pandeiro.
Amor de Mentirinha, Bodocongó e Cabeça Feita. Logo depois, Coco do Norte, Chico Chora e Sina de Cigarra. Uma qualidade de voz e de performance não só de profissional, mas de quem sabe os sambas por amor, decorando cada letra como se as histórias tivessem sido com ele.
A improvável figura vestia terno de linho 120, suspensórios, gravata borboleta e polainas, com lencinho branco no bolsinho do paletó e tudo. Um tipo. A seu lado, engraxada e conservada, a caixa preta de couro do pandeiro.
Entre a segunda e a terceira canção, armei-me de coragem e perguntei se ele conhecia Vanzolini. Pergunta capciosa, pois sabia de antemão a resposta. Zoólogo, poeta e sambista maior desses pagos, Vanzolini é conhecido até por quem não sabe seu nome. Muitos versos de seus sambas já são parte da língua portuguesa, como “dar a volta por cima” e “os pecados de domingo, quem paga é segunda-feira”.
O Barão conhecia tudo, naturalmente. Daí para frente, até a tarde virar noitinha e a noite madrugada, cantamos os sambas que eu sabia e outros tantos que fui aprendendo pelo caminho. O que eu não podia imaginar eram as histórias da deliciosa e ímpar figura.
O homem é uma enciclopédia ambulante da música popular brasileira, e não só. Sabe tangos como poucos, entende os meandros e as malandragens do “Lunfardo” e canta-os com sentimiento verdadeiramente portenho.
Seu nome é Ricardo Martins, mais conhecido como Barão do Pandeiro.
Supus, é claro, que o título lhe fora dado pela maestria no instrumento. Para minha surpresa, não era isso.
Nasceu em Niterói, mas é de linhagem árabe. O nome original de sua família é Al Barum, a verdadeira explicação. Mas poderia ser pelo talento. Seu pandeiro, como me contou, foi feito com todo o cuidado, com couro de porco – o melhor – e lustrado na “boneca”: um saquinho de pano, contendo as substâncias polidoras, evita o contato direto dos ingredientes com o instrumento, como me informou.
Carrega consigo, no bolso do paletó, aquela espécie de terço que os árabes usam para acalmar-se e refletir, coisa que não adianta muito no caso do Barão, cuja voltagem parece ser de duzentos e vinte: quando não canta e toca, conta histórias saborosíssimas da música brasileira, pontuadas com exemplos musicais, expressões, como “Fulano é magro como um fio de azeite”, “o tempero da salada não pode ser o prato principal” ou “não jogo purpurina em merda”.
Já o encontrei umas outras tantas vezes. Já fui ouvi-lo cantar em muitos barzinhos que têm a felicidade de dispor de sua arte para entreter os clientes.
Antes de nos despedirmos, naquela primeira vez, ele propôs um brinde: “Aos nossos defeitos, já que as qualidades ninguém vê mesmo”. Fiz tintim, pois em geral, isso tende a ser verdade. Mas cá estou a desmentir o artista e a propor, ao invés, que brindemos à suas qualidades que são muitas e variadas.
Saúde e vida longa, grande Barão, que do resto você mesmo cuida.