26.9.07

Prefácio


Entre a Vida e a Arte

Cilaine Alves Cunha
Profa. de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo

Peneira do Tempo estabelece uma peculiar combinação entre crônicas, poesias, aforismos e fotografias, absorvendo, em conjunto, a representação, a reflexão e a confissão sobre a condição do indivíduo situado nos últimos quarenta anos da história do país. Narração e lirismo ora se fundem, ora se alternam para relatar os acontecimentos da vida interior do sujeito, assim como os do mundo contemporâneo, configurando uma simbiose tal que a tentativa de autoconhecimento implica necessariamente a apreensão do outro e a do mundo. Na primeira parte do livro, nomeada “Antes do Depois”, a expressão lírica predomina, atravessando a maioria dos textos e fazendo com que a representação do outro e da cidade sejam filtrados pela exploração íntima dos sentimentos. Já na segunda, “Depois do Antes”, a expressão de conflitos interiores cede espaço à representação do mundo objetivo, seja ele a cena urbana ou a materialidade da poesia. Mesmo os poemas desse segundo momento, comparados aos da primeira, ganham maior objetividade.
Recorrente nas duas partes, a crônica moderna que, como se sabe, tende em geral a ser uma forma leve em que se flagram momentos pitorescos e atuais da cena urbana. Mas a crônica pode também encerrar uma história curta transformando-se, com isso, em um mini-conto ou ainda em uma reflexão que a aproxima do ensaio. Sérgio Pinheiro Lopes percorre com desenvoltura todas essas variedades, destacando ora o louvor a figuras e lugares chaves, ora o relato de acontecimentos singulares da experiência humana, ora a tentativa de compreensão de uma significativa cena da vida.
Na primeira parte, três crônicas-contos (“Dad”, “Long John Silver” e “Tio Plácido”), compõem uma série que, em conjunto, narra acontecimentos interiores do narrador, forjando sua própria auto-representação. A primeira delas anota a admiração pela mítica figura do pai acolhedor, justo e sábio, assim como a herança do amor pelos livros e da contemplação do mundo. Na homenagem ao amigo John, o narrador relembra o epifânico contato com o impulso criativo e com um modo de vida improvisada, avessa às exigências da cultura do consumo e do mundo administrado. Com tio Plácido, a subjetividade narradora redescobre o modelo ancestral da figura simbólica do pai, mas lhe acrescentando a liberdade moral que sabe equilibrar as exigências da regulação da vida, sem os excessos da arbitrária repressão, com o amor e o respeito pelo outro.
Em cada um desses relatos, o registro da admiração por essa figura mítica alterna-se com a consciência de sua perda definitiva, o que desencadeia a emergência de um primitivo e ancestral sentimento de desamparo e de abandono, inerente à condição humana. Na vivência interior provocada pela grande falta, jorra a ausência da figura paterna, encarnando-se ora no pai real, ora no amigo John ou ainda em tio Plácido, pessoas que, de uma ou de outra forma, tornam-se essenciais para que o eu possa se auto-representar e se inserir no mundo. Assim, o fio temático que atravessa a maioria dos textos dessa parte é a abordagem da experiência da perda, acompanhada de um esforço de elaboração e de superação de seus efeitos mais súbitos. O enfrentamento com a morte do pai, do amigo e do tempo utópico da juventude, quando a contracultura colocava na ordem do dia os ideais de liberdade, deságuam nos poemas que significativamente encerram essa parte.
“No Ano de Meus Cinqüenta Anos”, “Eu Nunca Deveria Ter Saído da Espanha”, “Cocaína”, “Emblemático”, “Perdido no Espaço” e “Idade” aludem, em sua disposição interna e em sua economia metafórica, ao irrompimento de um impasse em que as sucessivas experiências de perda coincidem com a saturação de uma pregressa vida cultural e, conseqüentemente, da história individual. O sujeito lírico se vê aí diante de uma encruzilhada: ao mesmo tempo em que se depara com um tempo simbolicamente perdido e com um eu que se era, que já não mais se é, mas que insiste em permanecer, testemunha a insustentável convivência com o asfixiante presente histórico, o que desemboca na incursão pelos tortuosos caminhos da alucinada alteração das sensações. No brutal choque de realidade operado pelo episódio da crônica “Última rodada” brota, no entanto, a clara tomada de consciência quanto à inevitabilidade da solidão e da efemeridade humana, levando à constatação de que é necessário parar, caso tio Plácido tiver realmente ensinado que é possível substituir um vício deletério por outro menos nocivo. Com isso, abre-se a possibilidade de enterro e libertação do passado, seja ele real, seja simbólico.
Daí que o emblemático advérbio “antes”, inserido no título dessa parte, nomeia, sobretudo, a duração em que se flagra todo esse processo, levando essa primeira parte a se constituir como alumbramento, revelação passo-a-passo de toda essa vivência interior. Surpreendentemente, o sujeito que vive tal experiência mantém enorme distância da amargura e da ranzinzice. Com humor envolvente, elegância e sutil ironia, o narrador e o eu lírico de Peneira do Tempo transmitem um desconcertante prazer de vida, um amor profundo e uma crença irredutível na figura humana, transformando os seus flashes instantâneos da realidade em uma arrebatada e lírica declaração de amor à vida e à humanidade.
Ainda nessa primeira parte, a sombra da morte retorna na bela crônica “Paisagem Noturna”, em que o narrador procura inicialmente discutir a razão que sustenta o curtíssimo ciclo de vida dos bares da cidade. Nessa crônica-ensaio, a tentativa de compreender a existência efêmera dos botequins compõe a fragmentada sucessão do tempo mercadológico, impresso nos ininterruptos fechamento e abertura de muitos deles. Dessa constatação emerge, no entanto, o reconhecimento de que a presença das pessoas e de toda uma geração é condição sine qua non para que se crie a história dos lugares, sem as quais estes se transfiguram em um deserto perdido num tempo imemorial.
Em outras crônicas, o retrato da vida urbana compõe a mentalidade do tempo. Situada no presente da enunciação, “Rúadas” desenvolve-se por meio de aforismos-flashes da cena contemporânea, flagrando a multidão anônima, despessoalizada, mas fantasmagoricamente presente no sapato dependurado no fio do poste de luz, nas buzinas ansiosas de motoristas mal-educados e na ferrenha competição por espaço travada entre o pedestre e o homem motorizado. Nessa mesma linha, “Carta a uma Amiga” funciona como um poema-epístola em que supostamente se procura acertar as contas com uma conhecida, equivocada com a possibilidade de uma bem-sucedida noite de amor entre amigos. Mas a carta-poema caracteriza-se também como uma crônica das relações amorosas contemporâneas ou, melhor dizendo, como uma sociologia do amor pela qual a presença da mercadoria em todos os níveis da vida humana torna rotina o contínuo descarte do sentimento-coisa, regido pelos códigos do cálculo.
Se a primeira parte encena o processo de descoberta e elaboração da perda, a segunda delas, intitulada “Depois do Antes”, condensa, no advérbio “depois”, a acomodação dos conflitos anteriores. Nessa vivência, a consciência da imperiosa necessidade de realmente conviver com os dissabores da vida moderna, de aceitar a solidão como um traço inerente ao mundo moderno acarreta a substituição da ênfase lírica por uma abordagem objetiva da vida urbana e da relação com o outro. Se, conforme Marx, a comédia é o gênero com que um povo se despede alegremente de seu passado, paralelamente, o poema-piada “Passagem” encerra, com um humor epigramático, o “egoturismo” ou a viagem do eu pela própria história de sua vida interior, completando, com isso, o ritual de despedida da psicobiografia. Nessa seção do livro, o sujeito do discurso abre-se para o mundo, torna-se um andarilho ou, como prefere Sérgio Pinheiro Lopes, um vira-lata catador de flagrantes da vida. Nesse momento, a contemplação do mundo desemboca numa reflexão sobre a vida e a arte, tendo em aforismos e em máximas suas formas privilegiadas, quer em prosa, quer em verso.
Em crônicas como “25 de Janeiro”, “Rua Augusta & Cercanias” e “Infância”, o confronto entre um modo de vida antigo, predominante durante a infância, com as práticas e os costumes contemporâneos desencadeia uma reflexão que, longe de imantar saudosismo, procura sem dor nem lamento traçar um balanço entre o que se perdeu e o que se ganhou com o progresso. Comparada a um tempo anterior em que predominava um ritmo de vida menos célere, assim como relações humanas até certo ponto imediatas, a vida contemporânea representa-se como um momento em que se observa a grande ausência do espaço público e da experiência coletiva. No poema que condensa, com uma beleza ímpar, essa ausência fantasmagórica, em “Vira-lata” o eu lírico procura retirar as camadas da convenção social que se grudaram, ao longo de anos, em sua face. Contemplando, pelas grades, a vida lá fora, ele se depara com o rompimento crônico entre a natureza e o ser humano, e entre este e seus semelhantes. Aí, o ponto de interseção entre o indivíduo e a paisagem urbana reside justamente no decreto, pela sociedade moderna, da impossibilidade de convivência com o outro, impressa quer no enjaulamento de igrejas, jardins e praças, quer no enclausuramento do indivíduo, preso aos limites da vida privada.
Alguns textos da segunda parte acentuam certos procedimentos das crônicas da seção anterior, seja aumentando a freqüência com que eles comparecem, seja acrescentando-lhes uma reflexão sobre a arte. “Faces” e “Interpretação dos Sonhos” procuram retirar de um fato cotidiano aparentemente insignificante uma significação maior das experiências humanas. A máxima referida à vida prática segundo a qual “a criatividade aparece quando se precisa inventar a partir de escassos elementos” (“Catando Lata”) ou de que “Deus está nos detalhes” (“Dizem“) estiliza-se como uma prática literária por meio da qual se trata de colecionar pormenores e minúcias expressivas do dia-a-dia como mecanismo de captação das essências significativas do mundo prático e da psicologia humana. Assim, “Faces” efetiva-se como uma tentativa de arrancar dos rostos anônimos da cidade traços configuradores do comportamento humano, levando a um inventário da psicologia dos indivíduos. Do sujeito apressado ao enamorado, passando pelo cabisbaixo, pelo sonhador, o ensimesmado, até o tipo anódino da “cara de paisagem”, o elenco faz emergir, numa gradação avaliativa e inesperada, o rosto humano desprovido de máscaras quando, num tempo utópico da inocência, os códigos opressivos da civilização tiverem perdido sua razão de existir. Já em “A Interpretação dos Sonhos”, a atenta observação de um diálogo entre um jogador do bicho e o banqueiro desemboca numa reflexão sobre a função do jogo popular. No esforço por interpretar o próprio sonho e, assim, decidir em que bicho jogaria, realiza-se uma espécie de psicanálise popular, levando o jogo do bicho a se configurar como um ato-fala libertador das opressões interiores do falante-jogador.
Em outra série de textos desse segundo momento, inextricavelmente ligada à anterior, a natureza da crônica muda de inflexão, já que, aí, o acontecimento do dia-a-dia passa a ser concebido como objeto de uma preocupação sobre as relações entre a vida e a arte. Como nos inesperados e mágicos gols de futebol de “Entretempo”, supõe-se aí que a arte habita em um tempo suspenso, num átimo que vive aquém da cronologia, num tempo imemorial anterior à origem, num termo, na essência das coisas ainda não modificadas pela aparência. Aludindo ao mecanismo central de superação do eu fragmentado anterior, a tentativa de traçar uma teoria da arte e, a partir daí, definir a melhor forma literária de leitura do mundo faz com que as crônicas “Retratos Escritos” e “Entretempo” coincidam tematicamente com os magistrais poemas “O Tempo das Coisas” e “Maravilhas”: em um e outro caso trata-se ainda de flagrar e de colecionar pormenores e minúcias expressivas da vida urbana, mas como mecanismo de captação de essências realmente significantes para a vida e para a arte.
Nesse sentido, a crônica “Faces” e o poema “Vira-lata” coincidem tematicamente com os poemas “Beijos” e “A Cicatriz e a Escrita”. Em comum entre eles o paralelo que se estabelece entre a condição do sujeito e da arte na vida moderna. Analogamente à experiência do indivíduo que deseja se libertar da solidão gerada pelo desaparecimento da vida coletiva, assim como das máscaras que a convenção social lhe impõe, o exercício da criação não se dá sem a luta sangrenta contra a aparência incrustada na linguagem instrumentalizada. Na procura da poesia, torna-se necessário encontrar, com precisão, a palavra poética, numa operação em que o ato criador se constitui como um exercício que retira o pó e a falta de ênfase nas coisas, tal como se observa na linguagem voltada para a comunicação.
Por fim, na maioria dos textos e em todos os poemas da segunda parte, observa-se o privilégio concedido ao aforismo, herança, em nossa cultura, das máximas da filosofia francesa do século XVIII. Como se sabe, o aforismo possui uma forma completa e redonda, mas com significado incompleto, já que se desenvolve posteriormente à leitura, num movimento de expansão de um pensamento ambíguo e denso voltado para a meditação. O amarramento esférico do sentido projeta o leitor para além dos limites das palavras e da leitura. Dessa forma, assim como em todos os poemas dessa segunda parte, é possível observar a presença de traços do aforismo em algumas crônicas, como “Dizem”, que traça uma espécie de eudemonologia ou princípios para uma vida mais feliz, julgando-se positivas ações que, como na teoria da arte, observam a exata medida de detalhes mínimos, capazes, no entanto, de oferecer um sentido melhor para a existência. Cria-se, com isso, a valoração de um tempo delimitado não pelo horário mecânico do relógio e do mundo da necessidade, mas pela duração interior que saboreia cada minuto casual da vida que passa.