26.9.07

Long John Silver


Pois é, João...
Eu tinha lá pelos meus dezessete anos. Meu melhor amigo havia ido para a Europa de navio. Fui até levá-lo ao porto, em Santos, e entrei para visitar o barco e tudo. Mas na volta – deve ter sido solidão –, na subida da serra, resolvi que precisava mudar alguma coisa na vida e, como não podia ir à Europa também, resolvi sair da casa de meus pais e morar sozinho. Pareceu-me uma ótima idéia.
Com meus parquíssimos recursos – era balconista de uma livraria na Barão de Itapetininga –, só tinha dinheiro para morar em quarto de pensão. Como havia algumas na rua Marquês de Paranaguá, na rua Augusta, na rua Caio Prado e vizinhanças, toquei para lá.
Estou no primeiro banco do tróleibus da rua Augusta, no ponto do Conjunto Nacional, quando você me reconhece da calçada e me convoca a descer. Juro, essa é a primeira lembrança sua que tenho. Você na calçada me chamando para descer do ônibus e conversar.
Acho que não estava acostumado a ser gostado, ou lembrado, ou que fizessem questão de mim. Por isso desci.
Pra encurtar, conversa vai, conversa vem, você sabia o lugar perfeito para eu morar. Naquela mesma casa de cômodos onde também morava, na rua Pará.
Grande lugar. Lembro-me das brigas das putas de madrugada, na esquina da Angélica; do quartel no meio do quarteirão – acho que ainda está lá –, em frente ao supermercado. Lembro-me também do seu quarto: era um velho banheiro, daqueles antigões, com pé direito alto, e que você, criativo e cheio de recursos como sempre, dividiu ao meio, na altura, é claro. Embaixo, a “sala de visitas”, com almofadões e tapetes – como era moda naquela época pazeamor – e um depósito de guardados. Em cima, o quarto com colchão, lâmpada de cabeceira e despertador. Na borda você cortou a madeira que servia de piso do andar de cima, de tal forma que virava uma prancheta de desenhista durante o dia. Aquele banheirão era o quarto mais incrível do cortiço. O meu, por outro lado, desde o início me anunciava metido a bacana: era um dos dois grandes porões da casa, com arcos ao fundo e umas impressões de mãos na porta. Disseram-me que era um costume egípcio. Meu pai até bancou um telefone só para mim, um luxo naqueles tempos. A gente acabava se reunindo lá.
Lembro-me da vez que você roubou um Karmann-Guia e me levou para dar uma volta alucinante por Higienópolis. Só me dei conta de que era roubado quando vi a ligação direta... ê medo!
Você era um passador de fumo como nunca mais vi na vida...
Na década de setenta, tirando os a favor dos militares, uns estavam na política clandestina – para derrubar a ditadura –, outros eram cabeludos e queimavam fumo, pelo menos os que queriam mudar o mundo sem ser pelas armas. Eu era desses segundos. Não conhecia ninguém na época com outras escolhas.
Organizado, você tinha uma agenda com nomes, telefones e quantidades habituais. Vendia as “bolsas” (era assim que se chamavam) todos os dias de segunda a sexta. Lá pelas nove da manhã, aparecia no meu quarto para usar o telefone e combinar as entregas do dia. Nunca mais do que cinco. Todas meticulosamente pesadas e fechadas em saquinhos plásticos.
Mas você queria mesmo era ser desenhista ou arquiteto...
Ouvi as histórias de suas conquistas, das sacanagens que tinham feito com você e das que você tinha feito de troco, das escapadas por um triz, como aquela lá no Riviera, lembra? Teve aquela vez que, marotíssimamente, induzimos o dono do cortiço a falar sobre maconha, do quanto ele era esperto e sabia reconhecer “maconheiros” de longe. Demos tanta risada dos maneirismos e das falas de “expert” dele, lembra disso?
É, João... Antes daquela viagem para o Mato Grosso, para comprar uma partida de fumo, você pediu para dormir no meu quarto, não queria ficar sozinho, você me disse. Coisa inédita. Achei um privilégio ficarmos conversando até tarde.
Uns dias depois, alguém me acordou logo de manhã e me mostrou a manchete de jornal com o acidente em que você morreu. Você e aquele moleque que te acompanhou para levantar uma grana.
Foi a única vez, que me lembre, que fiquei em choque. Demorei mais de meia hora para entender e integrar o que tinha acontecido. Nem quando morreu meu filho ou quando meu pai se foi, tive reação igual. Acho que é por ter sido a minha primeira morte.
Posso lhe dizer, até com certo orgulho, que quando achei o depósito, na sua sala de visitas, com todas as diferentes amostras de fumo, catalogadas, separadas em saquinhos, e um primoroso trabalho escrito, classificando cada tipo por efeito, potência e origem, uma coisa que ninguém sabia que você fazia, resolvi dividir tudo entre seus amigos. Todos os que eu conhecia fumaram do seu arquivo secreto em sua homenagem. Foram um ano e um episódio inesquecíveis.