26.9.07

Topo de Montanha


Pois é, essa começou como muitas viagens, grandes ou pequenas: na estação rodoviária. A estação de São Paulo está toda de roupa nova, com serviços de conveniência, abrigando todas as lojas de franquias conhecidas, mais algumas que só por lá são vistas. Organização, limpeza, segurança e conforto. Parece até aeroporto. Senti falta de carrinho de levar bagagem. Talvez isso seja coisa exclusiva de aeroporto.
Mas, para mim, essa pequena viagem começou quando praticamente chegava a meu destino, quando atravessava o braço de mar que separa o continente da ilha.
Começou com o cheiro, o vento e o barulho do mar, com a vizinhança dos grandes navios cargueiros, e à distância, o destino. Aquela imensa massa de terra saindo do mar verde, o verde mais claro das árvores ao fundo, em vales, reentrâncias, picos. Aos poucos, mais e mais nítida, a cidadezinha serpenteando pela costa com algumas pequenas incursões morro acima.
Afinal cheguei.
A me esperar o rosto amigo de amizade antiga, uma casa arejada, cães e gatos alegres, o sorriso me sorrindo através de muitos anos e um grande abraço apertado. Além disso, um quarto, um banheiro, além da companhia de um gatinho recém-chegado ao mundo há menos de trinta dias. Não se pode querer muito mais da vida.
Mas muito mais estava por vir. Há algo de mágico na conversa entre duas pessoas que conversaram muito na vida. Muitas premissas já estabelecidas, muitos momentos convividos, muito pão compartilhado. Há um tempo inicial que é gasto preenchendo os espaços de história que ficaram faltando, decorando com detalhes outros episódios contados mais rapidamente ao telefone ou por carta. Mas, depois, vai-se à essência e trocam-se as impressões da viagem maior da vida, fala-se dos aprendidos e dos desaprendidos, das esperanças e dos desvios de rota, do vai da vida que foi no vai da valsa.
Foi banho de alma em chuva de ilha. Que tudo lava. Lembranças de coisas de que nunca se soube. Natural, parte da topologia e das geografias, dos ângulos e das marés, pontos de vista vistos somente em certos pontos da vida.
Apesar da curta estadia, ouvi o começo de muitas outras histórias. Da japonesa que cultiva bromélias e conhece os índios caiapós ao arquiteto e suas casas de bio-arquitetura. Comi a comida de Donana, com a saborosa pimenta local, ouvi mais de uma pessoa mencionar as jaqueiras que são nativas do lugar. Contaram-me até sobre sítios arqueológicos com segredos passados, e muitas outras coisas a desvendar.
E eu, que sempre disse preferir montanha à praia, que nasci e vivi larga parte da vida na única grande metrópole brasileira, senti uma vontade danada de fazer como tantos gringos que vêm para o Brasil: morar em uma ilha dos trópicos. Afinal, uma ilha é o topo de uma montanha que começa no fundo do mar. Posso morar no topo e, ao mesmo tempo, estar na beira da praia.
Para coroar o passeio, fiz o que não fazia há muito tempo: vi um pôr-do-sol cinematográfico dando boa-noite à mágica ilha. Que o sono lhe seja leve. Essa ilha, a minha amiga antiga, seus amigos e suas histórias tiveram o condão de deixar minha alma em paz. Na despedida, na travessia de volta ao continente, ao observar aqueles enormes petroleiros atracados, aquelas jamantas do mar, vi que pode haver delicadeza até no que é bruto: um deles chamava-se Ataulfo Alves.