26.9.07

Faces


Uma das atividades mais interessantes enquanto se anda a pé, além de pensar, sonhar e lembrar, é observar as pessoas e seus modos.
Às vezes estou entretido com algum pensavento e alguém me chama a atenção ao passar. Sem querer, começo a olhar a atitude das pessoas ao andar. Há os obviamente preocupados; os apressados; os preocupados apressados, as duas coisas freqüentemente acontecem ao mesmo tempo. Há os despreocupados, que não estão nem aí; os que parecem passear, vai ver estão mesmo; há os que olham para os outros somente quando esses outros não estão olhando; os que andam olhando para o chão e que, imagino, devem achar um sem-número de coisas nas calçadas e ruas da cidade. Existem os que andam com ar sonhador; os que estão sempre flertando; além dos que chamo de “turistas”, sempre olhando para cima. Aliás, olhar para cima reflete uma escolha interessante: parece-me saudável espiar o céu, suas nuvens e ventos, checar a cor do dia. Quando se olha para cima, olha-se para o infinito, para os bilhões de anos/luz entre nós e os limites do universo e do tempo.
Há também os namorados de mãos dadas, andando com o passo acertado; os velhos que não desistem, apesar de quaisquer dificuldades que enfrentam com as calçadas esburacadas da cidade. Deve ser uma espécie de enduro para a terceira-idade.
Muitos têm cara de paisagem.
Há também, é claro, cada vez mais os que andam e falam ao celular ao mesmo tempo, comportando-se como se estivessem sozinhas, no recesso de suas casas ou escritórios. Exaltam-se, fazem expressões irônicas enquanto ouvem ou então demonstram sinais de impaciência com as mãos, como se estivessem dando cartas ou apressando o interlocutor que não os está vendo.
A expressão do rosto das pessoas pode, se prestarmos atenção e treinarmos o olhar, nos dizer muitas coisas, embora não seja possível adivinhar precisamente o que vai por dentro dos outros pela expressão da face. Uns parecem muito infelizes, com o cenho carregado e cheio de vincos. Já outros parecem radiantes, dão a impressão de estar se divertindo com tudo o que vêem. Há também os que demonstram nervosismo, passando a impressão de estarem à beira das lágrimas.
Todos nós temos o rosto treinado, quero dizer, se quisermos, podemos, mal ou bem, fazer cara disso ou daquilo. Mas tenho a impressão de que temos uma cara de caminhar que não entrega o que sentimos e, ao mesmo tempo, não é uma expressão proposital, pensada, como a que fazemos quando conversamos com alguém. É apenas o suficiente para não sermos óbvios. Talvez a maior parte das pessoas parta do princípio de que, no fundo, ninguém está sendo olhado muito atentamente. Eu, pessoalmente, concordo. Acho que a maioria não está prestando atenção mesmo. Estão, como dizia minha avó, ensimesmados.
Quantos de nós, ficando apenas sérios ou pensativos, não ouvimos alguém perguntar se estamos tristes.
Por outro lado, sempre me fascinou o rosto das pessoas cegas de nascença. Não importa a idade que tenham, se homens ou mulheres, todos possuem uma expressão desarmada no rosto, um sorriso bailando permanentemente nos lábios, um ar de crianças, o rosto que a inocência teria.
Não consigo deixar de pensar que assim seriam os rostos dos seres humanos se vivêssemos todos em harmonia, na Utopia, no Jardim do Éden de um futuro impossível.
Mas esses rostos desarmados e destreinados para serem máscaras das emoções sempre me passam uma coisa boa. Fazem-me lembrar de que, se a utopia não é provável, a matéria-prima do ser humano permite que se tenha esperança.
Já eu não tenho a menor idéia de qual é minha expressão quando ando atento e penso em tudo isso. Pode até ser cara de paisagem... Vai saber.