26.9.07

Passeio na Zona


Uma poça de água escura em uma estrada de terra. Um pneu de caminhão passa penosamente por ela. Primeiro entra e depois sai, quase que em câmera lenta, espirrando água.
Por caminhos precários, vindos de todos os cantos, em jornadas que às vezes levam dias e dias, toda a sorte de mercadorias viaja pelas veias congestionadas e barrentas deste país.
Aveia e carne, soja e arroz, castanhas e nozes, açúcares, mascavos ou não, pingas, queijos, batatas, mandioca e trigo, maçãs, peras, azeitonas e uvas. Tudo viaja sacolejando e serpenteando em enormes veículos, vindos de tantas outras partes e dirigidos por gente que deixou para trás, por várias semanas em cada viagem, mulher, filho, cachorro, galinheiro, amizade, só para que toda essa abundância, feita de chão, de suor e de enxada, chegue até aqui.
Quem passa pela zona cerealista de São Paulo deve sentir isso de alguma forma. São umas tantas ruas, atrás da avenida do Estado, vizinhas ao Mercado Municipal. Mas que passeio proporcionam!
Grãos, aguardentes, laticínios, todas as mercadorias ao alcance da mão e do olfato. Não há o que não haja. Armazéns, esteiras rolantes, carrinhos de mão – desses de carregar sacas –, pessoas suadas e sem camisa movimentando-se incessantes, para lá e para cá, levando e trazendo, descarregando aqui para carregar logo ali, comprando e vendendo a matéria-prima que vai para a boca dos mais variados tipos de comensais. Do milionário dos Jardins, degustando, digamos, sofisticadas receitas marroquinas, até migrantes e emigrantes de todas as partes fechando os olhos de puro prazer e suspirando de saudades de casa, da infância, da fartura e do passado, saboreando os pratos da terra distante, viajando no tempo e no espaço.
Estão todos aí, da enxada enferrujada ao garfo de prata, ambos remotos e inacessíveis um para o outro, mas irmanados pelo denominador comum da espécie: comer. E nesse caso, comer muito bem, sim senhor.
Conheci nessa zona o Laerte, dono de uma loja de bebidas. Maravilhou-me com histórias de pingas de todos os cantos e alambiques. Sabe tudo a respeito do assunto. Há também o “Jardineira”, que há quarenta anos vende cebola e alho a granel para os revendedores pequenos das esquinas da cidade. Origens, processos, marcas, famas, más famas e até mesmo algumas infâmias. “Tem gente por aí que paga mortadela e vende caviar”, dizem, falando de aguardente ou de cebolas. É da natureza do comércio haver tanto espertos como incautos, sem esquecer dos marujos de primeira viagem, naturalmente.
Senti-me um fenício quando entrei pela primeira vez em um mercado: extasiado com madrepérolas e os âmbares, com as especiarias vindas de portos distantes, inebriado com os perfumes exóticos de outras terras, para além de outros mares.
Mas tudo isso pode acabar, todo esse mercado pode mudar para perto do Rodoanel. Senti um aperto no coração quando soube disso, mas depois pensei: “ora, Sérgio, a vida é mesmo assim. A mudança é bom senso urbano, facilita a troca e desafoga o trânsito”. Vamos perder, é claro, esse pedaço de chão impregnado de história suada, com paredes descascadas pelo tempo. Poderia lamentar o tal do Progresso que leva embora, de embolada, histórias, pessoas, lugares e arquiteturas.
Mas prefiro pensar que algum menino, entrando pela primeira vez no novo mercado fenício do Rodoanel – depois, é claro, que suas paredes adquirirem alguma espessura afetiva e de algumas histórias correrem junto aos caixotes, sacas e papéis usados pelas enxurradas da vida –, sinta entrar por seu nariz e por seus olhos todo o aroma da riqueza humana, antiga como a invenção das cidades, desse mercado feito de terra e de rodas, de suor, de caminhos e de gente, de trabalho de sol-a-sol e de lua-a-lua, para que a vida continue, para que todos comam, mesmo que de forma ainda desigual, neste nosso país, para que continuem a partilhar, todos os dias, do pão imemorial.