26.9.07

Rua Augusta & Cercanias


Sábado. Saí para uma caminhada, mas, uma vez na Padaria Real, resolvi dar um pulo até a Livraria Cultura para comprar um dicionário etimológico da língua portuguesa – um velho sonho a preço acessível.
Fui a pé. O dia estava agradável. Não achei o dicionário, “esgotado”, disseram-me.
Uns dias mais tarde, encontrei um exemplar na Livraria da Vila. Resolvi almoçar por ali mesmo – um Beirute no restaurante Frevo, um dos poucos lugares e sanduíches que estão iguaizinhos há trinta anos atrás – e pegar um cineminha na sessão das duas, que nunca lota.
Depois do filme, resolvi descer a rua Augusta. Minha história com essa rua vem de longe, desde antes de eu nascer. Meus avós paternos moravam lá, entre a Alameda Tiête e a Alameda Lorena. Meu pai, meus tios e tias passaram uma parte da infância e da adolescência naquela casa. Trago comigo uma foto dela. Nessa época o transporte era o bonde, cujo ponto final ficava na altura da rua Estados Unidos ou da avenida Brasil, não sei bem. Sei que a rua era de paralelepípedos, mas todas o eram até a década de cinqüenta.
Naquele sábado à tarde desci a rua Augusta, ao contrário da canção do Hervé Cordovil. A subida dele era medida em quilômetro/hora, a minha descida em década/quarteirão.
Na minha infância e grande parte da adolescência, a rua Augusta era o centro chique de compras desta província, que São Paulo, a despeito de todos os ares de metrópole – a única típica do hemisfério norte a ficar no hemisfério sul, dizem alguns – ainda é, em seu coração e sua alma. Havia então butiques elegantes, casas de chá e muitos cinemas. Que me lembre, pela ordem, na direção bairro-centro, cine Paulista, cine Astor, cine Rio, cine Picolino, cine Majestic, cine Regência e cine Marachá. Além da Kopenhagen, com suas barras de marzipã e pastilhas dragê, a Casa Capricho e, mais tarde, as Lojas Modernas que vendiam brinquedos, a Hi-Fi, a Poster Shop, a Livraria Mestre-Jou e a primeira Livraria Cultura, que começou como uma pequena biblioteca circulante de livros alemães, justamente em frente à casa de meus avós. Não posso esquecer do Flamingo e seu sorvete Mud-Mud. Esta rua foi, durante muito tempo, o ponto de encontro dos jovens, fazendo às vezes de pracinha de cidade do interior, onde os garotos e as suas “pequenas” iam desfilar a última moda, o último modelo de carro, trocar olhares, iniciar e terminar namoros.
Depois veio a decadência. Com o advento dos shopping-centers, a rua foi murchando, esvaziando.
Hoje, durante essa descida, vi um comércio mais pobre, em comparação com seus dias de glória. Muitos salões de beleza, bingos, galerias com lojinhas, em pálida imitação de praças de shoppings, e uma ou outra loja remanescente dos tempos áureos. Curiosamente, suas travessas, que antes eram apenas isso, travessas com residências e um ou outro comércio local, sofisticaram-se e se tornaram completamente comerciais, sendo hoje muito mais metidas a chique do que as suas congêneres de outros tempos jamais sonharam.
Desci a última parte do caminho, da Lorena para baixo, pelas paralelas. Em uma delas, notei dois lugares: uma clínica de cães e gatos, na Consolação – onde morreu meu cachorro Paddy, há tantos anos –, que continua idêntica; em frente, há uma farmácia que, vi hoje, mudou de nome pela terceira vez; situa-se na parte de baixo de uma casa modesta de construção típica da década de quarenta. Chamava-se primeiramente Farmácia do Povo; depois Farmácia da Elite, quando o bairro ficou com ares de fino; e agora carrega o prosaico nome de Farmácia Consolação. De fato, a graça da farmácia foi um consolo.
A rua Augusta, homônima de uma outra famosa em Lisboa, ainda há de ter outro destino, vai gerar outras histórias, tenho certeza. Para mim ela continua uma rua de paralelepípedos, com bondes, ônibus elétricos e cinemas. De vez em quando ela me permite, além do acesso à rua Estados Unidos, passear pelo tempo.