26.9.07

Pessoas / Dad


Era como se fosse o nome dele para mim. Provavelmente herança de meu irmão mais velho que aprendeu a falar nos Estados Unidos e já o chamava assim quando nasci. Esse seu nome. Dad. Digo-o em voz alta, como se estivesse entrando em casa. Nunca mais havia feito isso. Uma onda de emoção me obriga a levantar para enxugar os olhos e assoar o nariz com um pedaço de papel higiênico.
Dad: Barbeava-se colocando a língua entre os lábios no canto da boca. Parecia que estava fazendo uma coisa que exigia especial habilidade.
Lembro-me de vê-lo à distância, parado em frente a uma banca de livros usados na praça Dom José Gaspar. Sempre de terno e, em geral, cinza. A cabeça inclinada para frente, atenta ao livro. Vê-lo para mim trazia certeza, aconchego, segurança, firmeza, calor. Ele tornava o mundo razoável, um lugar que tinha esperança.
Parou de fumar e de beber álcool aos 55 anos. Depois disso nem bolo com passas ao rum. Até então tinha predileção por gim-tônica.
Ele brigando com a guilhotina de uma janela emperrada, muito engraçado, lembrança de criança.
Tenho uma foto dele de casaco de nylon e chapéu em Land’s End. No fim do mundo. Tenho outra dele lendo em sua biblioteca. Uma ilha de reflexão cercada de livros por todos os lados. Deu-me, entre muitos, El Libro Del Consuelo Divino, de Meister Eckehart. Escrevia suas iniciais no canto superior direito, traço diagonal embaixo e a data. No fim do livro a mesma coisa, com a data de término da leitura. MBL.
Veio de Minas para estudar e morar no Colégio São Bento aos treze anos. Não sei quem me disse que ficava no colégio enquanto todos os outros meninos iam para casa nas férias. Solidão. Forja.
Disse-me, nos meus dezessete, que todos os problemas da vida deveriam vir nesta idade, quando se sabe tudo. Falou a mesma coisa sobre os cinqüenta anos, em outra ocasião. Ensinou-me também que um dos piores fracassos é ter sucesso naquilo que não se quer.
Quando mencionei a ele que queria ser feliz, fez um muxoxo e decretou que era bobagem, que felicidade não existe. Quando perguntei o que era marxismo, fez apenas um “pfué” de desprezo e recomendou que me informasse sobre os liberais do século dezessete.
Ele de cuecas, passando uma calça na cozinha de minha casa em Cambridge, às gargalhadas, lembrando uma entrevista com o Peter Ustinov. Gostou da minha surpresa com essa habilidade inimaginada.
Não falava de si. Depois soube que ajudara muitas pessoas ao longo da vida. Dele, nenhuma palavra a respeito. Nunca.
Hoje diríamos que estressava. Na época o termo familiar era neurastênico. Ele era um pouco, às vezes. Tinha uma predileção por cadeiras quando estava muito nervoso. Levantava e depois batia com elas no chão. Deve ter quebrado umas tantas durante a vida.
Tinha um retrato do pai na parede atrás de si no escritório da cidade. Sentia dificuldade em falar dele sem embargar a voz. Referia-se a ele como “papai”.
Trancava a casa antes de dormir, todas as portas e janelas, e verificava se o gás estava desligado.
Não era de muitos abraços e beijos, ficava quadrado. As exceções eram os netos.
Adorava livros e, entre esses, os seus. Livros e discos de música clássica eram seus únicos objetos de desejo, seus solitários itens de consumo. Tinha a habilidade de re-arrumar os livros até sobrar uma prateleira para acomodar mais.
Lia o tempo todo, digo, todo o tempo livre que não deve ter sido muito por grande parte da vida.
Um homem de inteligência brilhante e generosa, com poucos interlocutores à altura. Conversava com os livros. Pensava com rigor. Escrevia magnificamente. Claro, conciso, certeiro.
Não falava do que não entendia e media as palavras com o cuidado de um ourives. Não era de muitas palavras, mas elas podiam ser ferinas e machucar como uma chicotada quando ele queria.
Um mão-aberta, não ligava para dinheiro. Quando tinha, dava. Quando não tinha, dizia. Mas mesmo assim, por vezes dava um jeito. Depois de me negar um revolver de brinquedo, por caro, levou-me até a Casa Capricho pela manhã e deu-me o presente. Custou quatro cruzeiros e eu nunca esqueci.
Poucas vezes perdeu a paciência comigo de vez. Uma foi quando comparei a Santa Ceia a um ritual de canibalismo. Bateu com o guardanapo na mesa e subiu para o escritório indignado.
Foi deixando de ter amigos ao longo da vida, até ficar sem nenhum. Poucas pessoas o encantavam. Maria Júlia era uma. Os filhos e as noras, outros. Os netos então, nem se fala. Um homem de família.
O dever era para ele inquestionável. A gente faz o que tem de fazer, dizia, e acabou-se.
Dizia para mim que não temesse, pois era indestrutível. Acreditei e ele não me enganou. Hoje ele mora aqui, dentro de mim, indestrutível.
Um dos netos chamou-o uma vez de Lobo Mauro. Adorou. Contou-me que Lopes queria dizer filho de lobo. Havia uma fotografia de um cachorro chamado Lobo atrás da porta da casa de sua mãe. Durante um tempo, na infância, eu tinha medo de escuro e de lobo. Ele acendia a luz e me fazia companhia até que adormecesse.
Foi embora num domingo, depois da igreja. Depois de comungar. Em paz com Deus. Foi, sem deixar ponta solta para trás. Deixou-me farto consolo: sua memória.
Havia falado com ele, por telefone, de Ubatuba, no dia anterior, para dizer que tinha chegado bem. Um acordo de vida inteira entre nós dois, não deixá-lo sem notícias de mim. Foi assim até o fim.
Tenho uma fita de secretária eletrônica com sua voz gravada. Ele mal fala. Mas está lá. Olho para ela de soslaio, sem coragem de ouvir.
Acordo de vez em quando, no meio da noite, e parece que ouço seu ressonar no quarto ao lado. Mais de uma vez achei tê-lo visto na rua de relance. Já o ouvi me chamar várias vezes. Primeiro o susto, depois o aperto no coração.
É difícil que passe um dia sem que eu me lembre dele.
São seis horas da manhã lá fora.
Faz dez anos que é assim.