26.9.07

Catando Lata


Não sei bem quem me disse, mas sei que me pareceu verdadeiro assim que ouvi: as grandes cozinhas são filhas da escassez.
A criatividade aparece quando se precisa inventar a partir de escassos elementos. A feijoada é um belo exemplo disso, feita dos restos da mesa dos senhores, hoje representa o país à mesa.
Muitas pessoas em São Paulo colocam os sacos de lixo para fora no dia anterior à coleta. Imagino que acham que o caminhão passa cedo. Por isso, pelo menos na minha rua, bem de manhãzinha, aparecem os catadores de lata. O primeiro a aparecer tem um método que lhe parece eficiente, quero acreditar. Usa um cabo de vassoura com um prego na ponta com o qual cutuca os sacos de lixo para verificar se há latas e, se confirmado, dá-se ao trabalho de abrir o saco preto à busca de seus tesouros. Não deve ser cem por cento eficiente, pois depois dele, passam outros, mais meticulosos, verificando saco por saco rua abaixo. Como são vários e se sucedem, imagino que todos auferem resultados. Temos a sorte, nós, os habitantes desse quarteirão, de sermos todos freqüentados por catadores ordeiros: abrem, verificam, fecham e deixam os sacos como os encontraram.
Soube que muitos pastores evangélicos também pedem a seus fiéis que tragam latas usadas para a igreja. Com tudo isso, o Brasil já é, parece, campeão mundial de reciclagem de latas.
Outro dia vi uma velhinha baixa que desenvolveu outra tecnologia. Na primeira vez estava parada, perto de mim, enquanto eu estava sentado à mesa de uma padaria. Achei que ela esperava por alguém. De fato, por mim. Aguardou que me servisse do restante de meu refrigerante para depois, delicadamente, me perguntar se podia ficar com a lata. Disse que sim, é claro.
Descobri que ela anda por bares e padarias do bairro e, de mesa em mesa, faz a mesma pergunta gentilmente. Depois da permissão concedida, a recolhe e guarda em uma sacola. Se não, agradece e segue seu caminho.
Inteligente a velhinha. Intercepta a lata muito antes que vá para o lixo aguardar a sua vez de ser colocada para fora na manhã seguinte. Além disso, poupa-se de abaixar e de abrir e fechar sacos de lixo a procura das tais latinhas. Isso sem contar que não precisa acordar cedo.
Já observei também que a cidade conta com um serviço de coleta de lixo informal. São caminhões que recolhem os sacos de lixo e levam-nos embora muito antes do recolhimento regular. Esses aproveitam não só as latinhas, mas jornais, revistas, caixas de papelão e um sem número de outros materiais recicláveis.
Quando eu era menino, “catar lata” era sinônimo de não fazer nada, de estar à toa na vida. Hoje é meio de vida para muitos. Uma verdadeira indústria.
A imagem da velhinha não me sai da cabeça. Vejo-a quase sempre, descendo a avenida principal com sua sacola de latinhas. Catando lata. Um belo exemplo da cozinha de escassez.